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PURO VENENO

Em Amor & Amizade, a inglesa Kate Beckinsale acerta o tom como protagonista de uma cínica (e deliciosa) adaptação de uma pouco conhecida novela de Jane Austen

Publicada pela primeira vez em 1871, mais de cinco décadas após a morte da autora, a novela Lady Susan revela uma Jane Austen (1775-1817) muito mais abertamente sulfúrica do que a escritora se permitiu ser nas obras que encaminhou ela própria às editoras: a personagem-título, uma beldade que já vai lá pela metade dos seus 30 anos e enviuvou há pouco, é de uma patifaria escandalosa. Mas ela é também de uma clareza de juízo a respeito de si mesma que a torna ideal para Whit Stillman, um dos mais mordazes cineastas americanos. Surpresa: Susan Vernon é ideal também para a inglesa Kate Beckinsale – uma atriz de longa carreira, mas que nunca conseguira impor uma marca decisiva a um papel. Como a manipuladora, insensível e irreprimivelmente inteligente protagonista, Kate é o maior dos muitos deleites de Amor e Amizade (Love & Friendship, Inglaterra/Irlanda/Holanda/França/Estados Unidos, 2016).

Jane Austen escreveu Lady Susan aos 19 anos, em forma epistolar: em 41 cartas trocadas entre personagens diversos, vê-se que Susan Vernon, que gosta de viver bem mas não ficou em boa situação depois da morte do marido, explora todas as possibilidades para resolver o dilema. Para a filha Frederica, de 16 anos, Susan planeja uma união com James Martin, um ricaço abestalhado (ela tem péssima opinião sobre o intelecto da filha). No seu caso, as coisas são mais complicadas: Susan adoraria ficar com Lorde Manwaring, um sonho de homem, mas existe uma Lady Manwaring no meio do caminho.

Stillman penou para adaptar a novela; é provável que Austen a tenha engavetado por, assim como o diretor, considerá-la imperfeita ao ponto de não poder ser corrigida. Stillman, porém, teve um lampejo: depurou o caldo das cartas numa narrativa que quase sempre assume o ponto de vista de Reginald DeCourcy (Xavier Samuel), sobrinho de Susan pelo lado do marido. Reginald é apresentado a Susan quando ela vai se refugiar na casa do cunhado, à espera de que esfriem os rumores sobre seu comportamento desavergonhado com Lorde Manwaring. Ao cumprimentá-la, o rapaz diz, ferino: “Lady Susan, sua reputação a precede”. Reginald posa de cético mas se fascina com Susan e passa a defendê-la com um tantinho mais de paixão do que seria apropriado. Mas não com mais paixão do que o diretor: Susan Vernon é o que se chamaria de uma boa bisca, mas talvez sua índole não seja a única culpada – ter tanto espírito e inteligência e ser obrigada a fazê-los caber em uma vida tão estreita exige que se desenvolva alguma ferramenta de sobrevivência. A de Susan é o cinismo corrosivo, assim como o foi para a própria Jane Austen. Stillman compreende, e homenageia a ambas.

Publicado originalmente na revista VEJA em 18/08/2016

EM “DÍVIDA DE HONRA”, UMA BELEZA BRUTAL

Em atuações excepcionais, Hilary Swank e Tommy Lee Jones – ele também diretor e roteirista – invertem os sinais do Velho Oeste

Em seu canto de Nebraska, em 1854, a fazendeira Mary Bee (Hilary Swank, excelente) é um modelo de autossuficiência, diligência, moral e higiene. Findo o trabalho duro na terra, todos os dias, ela toca notas que só pode ouvir em sua cabeça, usando uma tapeçaria bordada como um piano: Mary Bee vive propondo casamento aos homens das redondezas, mas ninguém quer se casar com uma mulher tão assustadoramente capaz. Tanto, na verdade, que é a única que se dispõe a fazer um dificílimo trajeto de semanas para reconduzir à civilização três mulheres que enlouqueceram com a pobreza, o isolamento e o inverno de Nebraska.

Mary Bee alista como seu ajudante o vagabundo George Briggs (Tommy Lee Jones, também diretor e roteirista, e ator como sempre excepcional), que ela salvou da forca mas que não lhe retribui com gratidão: George é, como todos ali, vítima de uma vida tão brutal que se divorciou de seus sentimentos. Ou quase; no percurso, ele e Mary Bee formarão uma conexão tênue e de desfecho terrível. Como em outro magistral trabalho seu na direção, Três Enterros (2005), Tommy Lee Jones inverte os pontos de vista clássicos do western para desconstruir e rearranjar seus significados. O resultado é de uma beleza devastadora.

(The Homesman, Estados Unidos/França, 2014)

Publicado originalmente na revista Veja em 25/03/2015

BOLA DE NEVE

Em Força Maior, um casal escapa de uma avalanche, mas ela ainda assim ameaça varrer seu casamento

 
Quem sabe como vai reagir numa situação de pânico? Certamente não Tomas, que em Força Maior (Force Majeure, Suécia/Dinamarca/ Noruega/França, 2014) descobre para sua ingrata surpresa que é só a própria pele que lhe ocorre salvar quando o perigo é iminente. Almoçando com a mulher e o casal de filhos pequenos num terraço nos Alpes franceses, Tomas (Johannes Bah Kuhnke), como todos os outros frequentadores, anima-se ao ver que uma das avalanches provocadas por segurança pelo pessoal da estação de esqui começou a desabar ali, juntinho deles. Juntinho demais, talvez: em segundos, a torrente se avoluma e parece sair de controle, descendo a toda a velocidade. Tudo vira um pandemônio. Ebba (Lisa Loven Kongsli) se joga sobre as crianças; Tomas dá no pé. Afinal, vê-se que era alarme falso. O branco total da neve pulverizada vai se desfazendo, e Tomas volta quietinho para a mesa, como se nada tivesse acontecido. A família retoma o almoço, constrangida, mas sem tocar no assunto. O que não significa que o assunto não esteja lá, dominando e transformando sua dinâmica.
O diretor sueco Ruben Östlund, porém, tem vários outros complicadores ainda a somar a essa crise que, sozinha, já seria matéria-prima sensacional. Descobrir que o instinto do marido é resgatar suas luvas e seu iPhone – é isso que mais dói em Ebba – antes de proteger as crianças é um golpe duro para qualquer mulher e qualquer casamento. Que o marido então insista que não fugiu, e é tudo questão de interpretação, é acrescentar injúria ao insulto – mas o fato é que o atônito Tomas já não reconhece a si mesmo. E o que dizer da atitude de Ebba? Quando o casal discute a sós, ela põe panos quentes na briga. Mas se há terceiros presentes ela não perde a chance de puxar a conversa e expor Tomas, cobrando veredictos das testemunhas involuntárias e detend­o-se nos detalhes mais desabonadores.
As crianças instantaneamente passam a espelhar o conflito; desde o início voluntariosas e meio malcriadas, elas viram um tormento de birras e acusações (elas têm a quem puxar: numa cena, Ebba quase dá na cara de outro casal com a barra de sua cadeira no teleférico, mas finge que não fez nada e nem sequer pede desculpas). O dado essencial: pai, mãe e filhos, sem exceção, estão apavorados com a hipótese de que um rompimento seja inevitável. O maior desejo de cada um deles é restaurar o pacto familiar e reinstaurar o equilíbrio original. Só não sabem como desviar-se dos fatos e evitar que a avalanche que não se concretizou termine, afinal, por pegá-los em cheio.
O cinema escandinavo tem uma tradição que é de sua natureza mesmo em investigar a tensão entre o coletivo e o individual, entre a conformidade e a ruptura – uma tensão que existe em qualquer ser humano em estado minimamente civilizado, mas é preponderante em uma sociedade tão fortemente fundada sobre a noção do bem comum e que, embora cada vez mais secular, continua a ser orientada pelos princípios éticos de um protestantismo castiço. Como qualquer outra sociedade ocidental, porém, a escandinava está hoje sujeita a pressões que eram ainda insignificantes nas décadas em que Ingmar Bergman desenhou seu vasto painel da paisagem interior humana: aparência, consumo, a noção do direito à felicidade – do direito a tudo, na verdade –, a correção política e as pequenas e grandes hipocrisias que decorrem dela são novos vetores do comportamento que cineastas como o dinamarquês Thomas Vinterberg, de A Caça, o norueguês Morten Tyldum, de Headhunters, e Ruben Östlund, de Força Maior, tentam agora esquadrinhar.
A quem julgar que o desfecho de Força Maior é reconfortante, pede-se reconsiderá-lo: para chegar a ele, foram necessárias primeiro uma pantomima destinada a aplacar as crianças e depois uma concessão que envolve várias outras pessoas que nada tinham a ver com o pato. Parece inocente, fruto de um anseio natural de preservar a família. O dado perturbador é que, para a preservarem, Tomas e Ebba não podem saber quem são de fato. Têm de manter as aparências – para si mesmos, sobretudo.

Publicado originalmente na revista Veja em 15/03/2015

EM “CAPITÃO PHILLIPS”, UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA

Viver até o minuto seguinte, ganhar a vida: todos os significados de sobreviver (além de um mundo de implicações geopolíticas) estão contidos no drama soberbo do diretor Paul Greengrass

Parece impossível que os quatro sujeitos magérrimos e maltrapilhos que vêm num barquinho com motor de popa sejam capazes de resistir às táticas do gigantesco cargueiro Maersk Alabama para repeli-los: jatos d’água, subidas na velocidade, mudanças de curso que geram ondas desestabilizadoras. Mas o que se tem aqui é uma batalha do desespero contra a força bruta, e o desespero ganha. Os vinte homens que compõem a tripulação do Alabama não portam armas e não estão no negócio de fazer guerra; são da Marinha Mercante americana, muitos deles não são tão jovens e estão todos apavorados. Eles sabem que, na sua rota de Omã para o Quênia, passando ao largo da Somália, a pirataria corre solta, à taxa de até centenas de abordagens hostis por ano – e trata-se de uma pirataria menos profissional, por assim dizer, e mais imprevisível e extrema, que aquela que infesta, por exemplo, o Mar da China. O pessoal do Alabama, porém, contava com o fato de que desde o século XIX a bandeira americana tem sido garantia contra esse tipo de ataque. Não neste caso. Muse (Barkhad Abdi), Bilal (Barkhad Abdirahman), Najee (Faysal Ahmed) e Elmi (Mahat M. Ali) vêm há dias seguindo o cargueiro capitaneado pelo veterano Richard Phillips (Tom Hanks) e, quanto mais este se mostra um prêmio fora do seu alcance, mais sua determinação cresce. Eles são, todos os quatro, miseráveis. Na região da Somália em que moram, qualquer homem está sujeito ao recrutamento forçado para a pirataria pelos senhores da guerra locais, e recusá-lo está fora de cogitação – é morte certa. Estão em jogo também a honra de se mostrar um bravo e um certo sentimento nacional de que a pirataria é um meio de extrair retribuição pelo estrago que os pesqueiros industriais e a descarga ilegal de detritos de grandes navios infligiram às comunidades somalis de pescadores. A cerca de 400 quilômetros a sudeste do porto somali de Eyl, enfim, as coisas estão bem feias para o Alabama. E vão ficar particularmente feias para o homem que dá título a Capitão Phillips (Captain Phillips, Estados Unidos, 2013), o soberbo filme do diretor Paul Greengrass baseado no relato do próprio Phillips em Dever de Capitão (Editora Intrínseca).

O inglês Paul Greengrass, de 58 anos, um sujeito descabelado e expansivo mas muito discreto e desafeito ao culto à personalidade, pode não ser um nome tão familiar para o público. O público, porém, está muito mais familiarizado do que imagina com o seu estilo propulsivo e agilíssimo. Não só por Greengrass ser o autor de A Supremacia Bourne, O Ultimato Bourne e Voo United 93, mas porque, com esses filmes, ele se tornou o cineasta mais influente da última década. Todo mundo hoje copia seu jeito urgente, enxuto e imediato – e inovador – de fazer ação (exemplo mais notório: a série 007 na sua fase com Daniel Craig). Mas Capitão Phillips demonstra que ninguém sabe usar essas ferramentas com tanto propósito e perícia, e tão decididamente em prol do conteúdo, quanto o próprio Greengrass.

Em miúdos: a captura do Maersk Alabama em abril de 2009, e o subsequente sequestro de seu capitão pelos piratas, que saem com seu refém numa lenta e quase ridícula fuga rumo à costa de seu país em um pequeno salva-vidas cor de laranja, é um desses episódios capazes de encapsular uma vastidão de vicissitudes geopolíticas em uns poucos lances e uns poucos dias. Contrapõe, por exemplo, a pobreza e o desmantelamento acarretados pela longa guerra civil que assola a desde sempre precária Somália, a oposição cultural entre o Ocidente e o mundo muçulmano, o poderio econômico e militar dos Estados Unidos, a ironia de que boa parte da carga do Alabama era humanitária e se destinava em parte à própria Somália, a constatação de que as pessoas violentas não são menos perigosas por sua violência ter razões. (Desde então, mais um ingrediente se juntou a esses: a tripulação do Alabama diz que Phillips convidou ao desastre ao navegar perto demais da costa somali.) Greengrass, porém, resiste como sempre resistiu às tentações da grandiloquência: escolhe novamente um tema de alta octanagem política, mas dispensa o discurso que o cerca. Aqui, só os acontecimentos e os atos dos personagens falam. E por isso mesmo falam com tanta pertinência.

Tom Hanks está no seu melhor como o capitão Richard Phillips: desde a primeira sequência, em que se apronta para embarcar de sua casa no Estado de Vermont rumo ao Alabama, ele evoca a correção e a normalidade mundanas da classe média e os sacrifícios tidos já como corriqueiros que se fazem em nome da família e do trabalho – como passar meses distante de casa, em águas perigosas. Com a mulher, a enfermeira Andrea (Catherine Keener), no carro, a caminho do aeroporto, a conversa descontínua, de frases pequenas, gira em torno dos filhos; a menina está indo bem, o menino talvez não compreenda como a escola pode ser decisiva para seu futuro. Em alto-mar, sob a mira das AK-47 dos piratas, é isso também que o capitão compartilha com o líder do grupo, Muse – a compreensão instintiva de que, marinheiros mercantes e bandidos, eles estão todos ali em serviço, e é preciso negociar pautando-se pelo pragmatismo. Phillips e Muse se equilibram sobre esse estreito território comum que é querer sobreviver primeiro por mais um minuto e depois por quanto tempo a vida possa durar. Mas estão sob a tração exercida por seus mundos opostos, a qual Greengrass exprime apenas visualmente, valendo-se da escala: a lancha frágil e o cargueiro imenso, a magreza dos piratas e o físico confortável da tripulação, o diminuto salva-vidas e as colossais embarcações militares que o vão cercando. E, no centro de tudo, sempre Hanks, o astro, e Barkhad Abdi, o sensacional somali que dirige limusines em Minneapolis e compareceu a um teste aberto de elenco na companhia dos amigos que interpretam seus companheiros de pirataria. Nos filmes de Greengrass, como nas águas do Chifre da África, os mundos mais díspares acabam colidindo, com resultados explosivos.

Publicado originalmente na revista Veja em 13/11/2013

“O SACRIFÍCIO”: UMA CULPA SEM FIM

Aos 14 anos, durante a Revolução Cultural, o cineasta Chen Kaige denunciou o pai como “inimigo do povo”. Nunca parou de se arrepender, nem de se expiar em belos filmes

Muitas vezes, os épicos históricos chineses não têm nenhum propósito oculto, só o objetivo evidente de seduzir sua plateia com cenários suntuosos, figurinos intrincados e muitas cenas de artes marciais. Outras tantas vezes, porém, a ambientação no passado cumpre um intuito: o de dizer, de forma cifrada, as coisas de que ainda não se pode falar abertamente na China. É a essa categoria que pertence O Sacrifício (Zhao Shi Gu Er, China, 2010), de Chen Kaige, que estreia nesta sexta-feira no país – e que, aliás, só na sua primeira meia hora se faz passar por épico; assim que o ponto de partida do enredo está estabelecido, Kaige o transforma num drama íntimo, e doloroso, sobre a disputa desigual de dois homens pelo destino, e pela própria alma, de um menino.

O dado mais saliente da biografia de Chen Kaige, o diretor que inaugurou a chamada Quinta Geração do cinema chinês (à qual pertence também Zhang Yimou), é amplamente conhecido e já foi muito analisado: em 1966, quando ele tinha 14 anos e a ortodoxia maoista pregada pela Revolução Cultural começava a varrer o país, ele denunciou o próprio pai às autoridades como “inimigo do povo”. Fora encorajado, mas não obrigado, a fazê-lo pelos professores da escola. O pai, Chen Huaikai, um autor de filmes baseados nas tramas da Ópera de Pequim, foi condenado a trabalhos forçados (ou seja, foi enviado a um dos tenebrosos gulags chineses). O filho foi mandado para uma “reeducação revolucionária” na zona rural. Antes mesmo de se separarem, o menino já se arrependera e pedira perdão ao pai. E, embora este tenha sido concedido sem reservas desde o primeiro momento, Kaige nunca parou de se arrepender, e de não perdoar a si próprio. Um dia, disse Kaige, ele ainda recriará esse episódio definidor de sua vida em um filme. Mas a Revolução Cultural está ainda elencada entre a infinidade de assuntos “sensíveis” para o país. Enquanto não deixa de sê-lo, é assim que Kaige o trabalha e retrabalha em filmes como Adeus Minha Concubina, O Imperador e o Assassino, Together e este O Sacrifício: de forma alusiva, mas nem por isso menos franca ou sentida.

O Sacrifício, para todos os efeitos, é uma adaptação de uma peça do século XIII, que por sua vez se passa no século VI a.C.: um general, Tu Angu, aniquila todo o clã Zhao para roubar-lhe o poder, e mata ainda um recém-nascido que seria o último herdeiro da família massacrada. Ou pensa que o matou. Na verdade, Cheng Ying, o médico que fez o parto do menino, tomou-o para si, e ofereceu seu próprio bebê em sacrifício. Para garantir a segurança de Bo’er, essa criança tão preciosa, o médico se vale ainda de outra artimanha. Pede ao general que o deixe integrar sua comitiva, e que se torne padrinho do garoto. Bo’er, então, crescerá sob os olhares ciumentos desses dois homens fundamentalmente diferentes entre si. Ying, o médico, quer que Bo’er nunca venha a conhecer sua verdadeira origem e se torne comum para ser, consequentemente, invisível entre as pessoas comuns. Tu Angu quer que Bo’er desenvolva sua ambição e seu paladar pelo poder. Entre os dois, é claro que Tu Angu se mostrará mais fascinante para o menino, que assim conduzirá o médico e o general a uma inevitável medição de forças (a qual se desenrola em um outro plano ainda, mais básico, pela contraposição entre introspecção e prepotência projetada pelos dois estupendos atores escolhidos para os papéis, Ge You e Wang Xueqi).

Chen Kaige reproduz, dessa forma, não os seus sentimentos, mas os de seu pai: o desespero de ver um filho sendo cooptado por uma força muito superior à sua – a do estado – e a tristeza de perdê-lo para uma engrenagem que não tem nenhum apreço pelo indivíduo que está aliciando. Mas, como em Together, de 2002, sobre um prodígio do violino que o pai pobre e ignorante tenta sem descanso compreender e nutrir, o ponto a que o diretor quer chegar é outro – sempre, em todos os seus filmes, o reconhecimento pelo filho de qual é a legítima, a merecedora de amor, entre as várias figuras paternas. Kaige tem 60 anos, mas nunca para de pedir perdão – nem de tirar, dessa necessidade voraz, belos filmes.

Publicado originalmente na revista Veja em 02/01/2013

da vida das marionetes

Em Moonrise Kingdom, o diretor Wes Anderson radicaliza seu formalismo e seus maneirismos para, inesperadamente, libertar a si e aos seus personagens

Usando aqueles seus planos preciosos, que correm em perfeitas paralelas ou perpendiculares em relação à cena, o diretor Wes Anderson mostra no início de Moonrise Kingdom (Estados Unidos, 2012) outro dos meticulosos dioramas em que costuma confinar seus personagens: a casa dos Bishop na ilha de New Penzance, tão grande que a mãe (Frances McDormand) toma de um megafone quando tem de chamar o marido (Bill Murray) ou os filhos – e tão cheia de detalhes vívidos, da vitrolinha dos garotos ao tecido encorpado do vestido da menina Suzy (Kara Hayward), que desde o primeiro instante o espectador se sente como se também ele fosse agora uma peça dessa casa de bonecas.

Suzy, de 12 anos, é o detalhe que destoa: com um par de binóculos colado aos olhos, ela aparece nas portas, nas janelas, no telhado, sempre olhando para fora – para o mundo. Suzy se sente incompreendida pela família e apartada dela, e é infeliz. E logo se vai saber que é com ela que está Sam (Jared Gilman), escoteiro fugido do acampamento regido pelo comandante Ward (Edward Norton). Sam tem também ele 12 anos e é, como Suzy, um corpo estranho em seu pequeno universo: é órfão e os colegas o hostilizam. Um ano antes desse fatídico setembro de 1965, Suzy e Sam se conheceram em um evento escolar e, como mostra Anderson em um flashback de estupenda força narrativa, reconheceram-se como almas gêmeas e planejaram escapar. Antes mesmo que Ward e o policial Sharp (Bruce Willis) se deem conta de que ocorreu uma fuga, Suzy e Sam já se estão encontrando. Ele comparece com sacos de dormir, víveres e seu conhecimento da vida selvagem. Ela traz a vitrolinha, um compacto de Françoise Hardy, um gato numa cesta e vários livros. No percurso até uma pequena baía onde pretendem se refugiar (e que batizam de Moonrise Kingdom, ou “reino do nascer da Lua”), as duas crianças ensaiam uma singela iniciação amorosa e estabelecem uma tocante rotina em comum. Sua fuga só pode ser breve e simbólica, porque eles estão numa ilha. Mas sua determinação de constituir-se em uma família que faça jus à promessa dessa palavra é genuína, absoluta e ferrenha. Os adultos de Moonrise Kingdom são tristes, insatisfeitos, infantis, sós mesmo quando têm companhia e ignorantes de si próprios. São as crianças, sofridas mas ainda não entorpecidas, que têm os olhos abertos.

Desde que Anderson se lançou, no fim dos anos 90, sua combinação de preciosismo e sinceridade foi primeiro enaltecida (com toda a razão) em filmes como Três É Demais e Os Excêntricos Tenenbaums, e depois demolida (também com razão) em A Vida Marinha com Steve Zissou. Há três anos, porém, Anderson ressurgiu com um experimento radical: uma animação em stop-motion, para adultos, adaptada do conto infantil O Fantástico Sr. Raposo, de Roald Dahl. Aprofundou nessa iniciativa tanto seu formalismo visual e seus maneirismos narrativos quanto a sinceridade de sentimentos que o move – em um recurso de impacto extraordinário, ele tratava os bonecos como atores, focalizando-os em close-ups de expressividade alarmantemente humana.

Moonrise Kingdom herda esse atributo, mas com sinal invertido: os atores, aqui, agem como marionetes num teatrinho. E, no entanto, o resultado é libertador, para o criador e para os personagens. A emoção que já palpitava em Três É Demais ou Tenenbaums, e transbordava em Sr. Raposo, aqui reverbera e ressoa, e é levada com força crescente de uma cena para outra. O triste policial que, usado como amante eventual pela mãe de Suzy, encontra a realização onde menos esperava; o chefe dos escoteiros que, de arremedo de criança, se metamorfoseia no adulto que não sabia ser; os dois enamorados que, no momento decisivo, encontram a coragem de que precisam: todos os entrechos de Moonrise Kingdom convergem e culminam durante uma tempestade que põe a todos em perigo mortal ao fustigar a ilha de New Penzance (uma das muitas referências afetivas do diretor, esta à ópera cômica Os Piratas de Penzance, de Gilbert & Sullivan), mas ao cabo da qual o amor, em todas as suas formas, vai triunfar. A começar pelo amor pleno e cada vez mais repleto de autoconhecimento de Wes Anderson pela arte que ele cunhou, na qual a certa altura se perdeu e em que agora se reencontra de forma arrebatadora.

Publicado originalmente na revista Veja em 17/10/2012

Em “A Fita Branca”, o ninho da serpente

Em um filme notável, o diretor Michael Haneke mostra uma aldeia alemã, às vésperas da I Guerra, como criadouro do nazismo

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EM “ESTÔMAGO”, OS PECADOS DA CARNE

A comédia dark do diretor Marcos Jorge tem tudo para agradar àqueles espectadores com um fraco pelos sabores exóticos

Raimundo Nonato, o arquetípico migrante nordestino, chega a São Paulo com uma mala velha, passa o dia vagando sem rumo pela cidade e, a horas tantas, cansado e faminto, entra num boteco do centrão, come dois salgadinhos e cai no sono no balcão. Na hora de fechar, o dono descobre o óbvio: cadê o dinheiro para pagar o lanche? Então se inicia a curiosa saga do protagonista de Estômago (Brasil/Itália, 2008). Em troca da conta, ele terá de lavar a louça. No dia seguinte, vai ter de aprender a fazer pastel e coxinha. Ocorre que Raimundo é um cozinheiro nato, e logo o bar que vivia às moscas estará lotado de fregueses – entre os quais a prostituta Íria, que come as tais coxinhas com um prazer que causa vertigens ao seu criador. É por força de seu talento que Raimundo pulará dali para o fogão de uma cantina italiana (agora com salário e benefícios) e ganhará algum espaço no coração de Íria. Mas, como desde o início se sabe que ele acabou na prisão, é de imaginar que, em outras áreas, sua virtude não seja assim tão exaltada. O que ele fez para interromper uma carreira tão auspiciosa, e como evitará ser devorado pelos colegas de cela: eis as duas questões que Estômago vai deslindando com habilidade, enquanto simultaneamente homenageia e parodia um personagem clássico do cinema, o do cozinheiro que seduz a todos com seu tempero – todos, aqui, sendo não gourmets, mas frequentadores de botecos pouco higiênicos, presidiários e prostitutas.

Dirigido por Marcos Jorge, estreante em longa-metragem mas profissional experiente na televisão italiana, na publicidade e nas artes plásticas, Estômago tem lá seus vícios. A saber, aquela propensão para encher os diálogos de palavrões, onde eles cabem e também onde são supérfluos. Mas compensa seus pecadilhos com a direção fluente, imaginativa e salutarmente despretensiosa. Compensa-os, acima de tudo, na escolha dos protagonistas: o baiano João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus, que tem um dom para ao mesmo tempo fazer cara de paisagem e ser expressivo, e a novata Fabiula Nascimento, que enche Íria de calor e espirituosidade. Estômago talvez não seja para todos os gostos. Mas Jorge acerta tão bem a mão nos fundamentos básicos do cinema (entre os quais a trilha encomendada ao italiano Giovanni Venosta, excelente acompanhamento para a história) que não deixa muita dúvida: há chef novo na cozinha.

Publicado originalmente na revista Veja em 09/04/2008

“A ESPIÔ: NO PONTO DE PARTIDA

Paul Verhoeven retorna à Holanda e à II Guerra – e se reencontra também como cineasta

Incensado, com razão, por RoboCop e O Vingador do Futuro, e ridicularizado, com certa injustiça, por Showgirls e Tropas Estelares, o holandês Paul Verhoeven personifica um dos percursos típicos dos cineastas estrangeiros em Hollywood: chegou coberto de glória, foi-se embora como um fracasso. Seu filme mais recente, porém, é um forte indício de que ele pode estar não numa trajetória descendente, mas pendular – e de novo em ascensão, portanto. A Espiã (Zwartboek, Holanda/Alemanha, 2006) é um Verhoeven como fazia tempo não se via: vigoroso, voluptuoso e provocativo, mas sem aquele quê de gratuidade e de ironia extrema que o havia tornado indigesto para a plateia, em especial a americana. Como muitos outros artistas em situação semelhante, também, Verhoeven se renovou voltando ao ponto de partida – no caso, Haia, a cidade onde cresceu e, aos 6 anos, presenciou o auge da ocupação nazista na Holanda. É nesse mesmo tempo e lugar que Rachel (a excelente Carice van Houten), ex-cantora de cabaré judia, vive escondida na casa de fazenda de uma família cristã. Rachel é descoberta, paga um policial para ajudá-la a fugir, e quase morre no que era na verdade uma armadilha. Acolhida por um grupo de resistência, reinventa-se como agente dupla. Sob o nome perfeitamente holandês e protestante de Ellis de Vries, e com os cabelos – todos eles – tingidos de loiro, ela se insinua para um alto comandante da força de ocupação alemã (Sebastian Koch, o dramaturgo de A Vida dos Outros). Logo fica claro, porém, que alguém está alertando os nazistas para os planos do grupo. E, como Ellis é judia, é mulher e não se fez de rogada em pular na cama de um SS, ela é naturalmente a primeira e principal suspeita. O moralismo e o preconceito, postula Verhoeven, não escolhem lado.

Passadas três décadas, assim, o diretor retoma o assunto do filme que o fez famoso e comprou sua passagem de ida para os Estados Unidos. Como em O Soldado de Laranja, de 1977, A Espiã não está minimamente interessado em relembrar as agruras vividas pelos holandeses na II Guerra. Quer, ao contrário, mostrar aquilo que eles gostariam de esquecer: que, apesar da reputação de tolerância que cultivam, também colaboraram com o inimigo e foram hipócritas. “De outra forma, ao final da guerra não teriam restado apenas 30.000 dos 140.000 judeus holandeses”, diz o roteirista Gerard Soeteman, com quem Verhoeven escreveu ambos os filmes. Quase todos estes, como Ellis, foram denunciados em troca de dinheiro. E quase todos os que viveram para contar sua história, como ela (a personagem é um apanhado de diversas figuras verídicas), o fizeram graças a uma conjunção de sorte, engenhosidade e pendor para a dissimulação. A certa altura, Ellis se pergunta se tudo isso algum dia vai terminar. Verhoeven, que é um realista, responde que não: na última cena, já novamente sob seu nome verdadeiro de Rachel e morando num kibutz em Israel, a protagonista se recolhe no que parece ser a mais perfeita paz. O diretor, então, afasta um pouco a câmera, para mostrar o arame farpado e as armas que defendem esse seu oásis. Certas coisas mudam, mas não acabam.

Publicado originalmente na revista Veja em 11/01/2008

“UM LONGO CAMINHO”: UMA PONTE ENTRE A CHINA E O JAPÃO

Zhang Yimou volta às suas raízes dramáticas

Em Um Longo Caminho (Riding Alone for Thousands of Miles, China/Japão, 2006), o velho Takata (Ken Takakura) não vê seu filho há anos, por causa de um desentendimento. Quando recebe a notícia de que ele está à morte, decide fazer um último gesto de reconciliação: ir à China filmar uma ópera de máscaras pela qual o moço é apaixonado. Mas o japonês Takata não fala a língua, o cantor que ele deve gravar está preso e a burocracia para visitá-lo na prisão é terrível. Austero ao ponto da incomunicabilidade, Takata sente, porém, que a viagem o está transformando, no contato com o espírito gregário e ruidoso dos chineses. Hoje mais conhecido por épicos de artes marciais como Herói e O Clã das Adagas Voadoras, o diretor Zhang Yimou faz aqui um retorno às suas origens dramáticas – não tão bem-sucedido quanto os anteriores, mas ainda assim belo e envolvente.