É quase excessiva a beleza da primeira incursão de Zhang Yimou nas artes marciais
Um membro da equipe ficou de prontidão no interior da Mongólia, encarregado de dar o alerta no momento em que as folhas de uma floresta de carvalhos atingissem seu melhor amarelo outonal. Quando a hora chegou, o diretor Zhang Yimou deslocou o time inteiro para a locação e colocou-o para trabalhar numa tarefa surreal: classificar segundo sua tonalidade todas as folhas que caíssem das árvores. As mais belas serviriam para passar em frente ao rosto das atrizes Maggie Cheung e Zhang Ziyi, as de primeira linha voariam em torno delas, as de segunda ficariam mais para o fundo do cenário e as restantes seriam devolvidas ao chão. O saldo desse perfeccionismo extremado é uma das muitas cenas sublimes de Herói (Hero, China/Hong Kong, 2002), a primeira incursão de Yimou, um dos expoentes dos festivais internacionais, nas artes marciais. Herói quebrou o recorde de audiência na China, concorreu ao Oscar de filme estrangeiro em 2003, acumulou uma bilheteria mundial de quase 180 milhões de dólares e animou Yimou a voltar a essa seara com o ainda superior O Clã das Adagas Voadoras, que deve estrear no Brasil em 8 de abril. Se esse fenômeno merece uma ressalva, é que sua beleza às vezes excessiva distrai a atenção do que mais esteja em jogo no filme.
Herói revisita um episódio central para a história da China: a unificação do país pelo rei de Qin, que no século III a.C. submeteu as monarquias rivais e tornou-se o primeiro imperador – além de construtor da Grande Muralha. No filme, o rei recebe um oficial de província (Jet Li) que acaba de eliminar os assassinos que ameaçavam seu trono, e pede para ouvir sua narrativa. Seguem-se então três versões de como o obscuro Sem Nome derrotou os lendários Céu (Donnie Yen), Espada Quebrada (Tony Leung) e Neve que Voa (Maggie Cheung). Cada versão é encenada em uma cor diferente, e todas elas servem de mote para o maior atrativo do filme: as lutas estupendamente coreografadas, que vão do estilo mais ortodoxo ao mais lírico, como um combate travado sobre as águas de um lago. Tudo o que há de drama em Herói está expresso na atmosfera diversa de cada uma das lutas e no êxtase dos cenários, figurinos e cores. Essa, enfim, é a habilidade que responde pelo prestígio de Yimou: mais do que qualquer outro cineasta, ele sabe mimetizar um gênero de forma tão completa que, ao final, estabelece para ele um novo patamar.
Não deixa de ser irônico, porém, que Yimou, que passou seus dezoito anos de carreira às turras com os censores chineses por causa de filmes como Lanternas Vermelhas, A História de Qiu Ju e Tempos de Viver, tenha adotado o rei de Qin como pivô de Herói. Os massacres promovidos pelo monarca foram tão extensos e brutais que, apesar de seus feitos, sua memória persistiu em relativa desgraça até ser reabilitada por Mao Tsé-tung, que viu nele uma inspiração para a Revolução Comunista de 1949. Como personagem, o rei de Qin tem o selo de aprovação do Partido – e o tratamento dado a ele por Yimou, de um déspota iluminado e incompreendido, só fez reforçar a impressão de que o diretor teria se juntado ao inimigo. Herói talvez seja, assim, politicamente incorreto. Mas, como espetáculo, está acima de qualquer suspeita.
Publicado originalmente na revista Veja em 23/03/2005
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