Aos 14 anos, durante a Revolução Cultural, o cineasta Chen Kaige denunciou o pai como “inimigo do povo”. Nunca parou de se arrepender, nem de se expiar em belos filmes
Muitas vezes, os épicos históricos chineses não têm nenhum propósito oculto, só o objetivo evidente de seduzir sua plateia com cenários suntuosos, figurinos intrincados e muitas cenas de artes marciais. Outras tantas vezes, porém, a ambientação no passado cumpre um intuito: o de dizer, de forma cifrada, as coisas de que ainda não se pode falar abertamente na China. É a essa categoria que pertence O Sacrifício (Zhao Shi Gu Er, China, 2010), de Chen Kaige, que estreia nesta sexta-feira no país – e que, aliás, só na sua primeira meia hora se faz passar por épico; assim que o ponto de partida do enredo está estabelecido, Kaige o transforma num drama íntimo, e doloroso, sobre a disputa desigual de dois homens pelo destino, e pela própria alma, de um menino.
O dado mais saliente da biografia de Chen Kaige, o diretor que inaugurou a chamada Quinta Geração do cinema chinês (à qual pertence também Zhang Yimou), é amplamente conhecido e já foi muito analisado: em 1966, quando ele tinha 14 anos e a ortodoxia maoista pregada pela Revolução Cultural começava a varrer o país, ele denunciou o próprio pai às autoridades como “inimigo do povo”. Fora encorajado, mas não obrigado, a fazê-lo pelos professores da escola. O pai, Chen Huaikai, um autor de filmes baseados nas tramas da Ópera de Pequim, foi condenado a trabalhos forçados (ou seja, foi enviado a um dos tenebrosos gulags chineses). O filho foi mandado para uma “reeducação revolucionária” na zona rural. Antes mesmo de se separarem, o menino já se arrependera e pedira perdão ao pai. E, embora este tenha sido concedido sem reservas desde o primeiro momento, Kaige nunca parou de se arrepender, e de não perdoar a si próprio. Um dia, disse Kaige, ele ainda recriará esse episódio definidor de sua vida em um filme. Mas a Revolução Cultural está ainda elencada entre a infinidade de assuntos “sensíveis” para o país. Enquanto não deixa de sê-lo, é assim que Kaige o trabalha e retrabalha em filmes como Adeus Minha Concubina, O Imperador e o Assassino, Together e este O Sacrifício: de forma alusiva, mas nem por isso menos franca ou sentida.
O Sacrifício, para todos os efeitos, é uma adaptação de uma peça do século XIII, que por sua vez se passa no século VI a.C.: um general, Tu Angu, aniquila todo o clã Zhao para roubar-lhe o poder, e mata ainda um recém-nascido que seria o último herdeiro da família massacrada. Ou pensa que o matou. Na verdade, Cheng Ying, o médico que fez o parto do menino, tomou-o para si, e ofereceu seu próprio bebê em sacrifício. Para garantir a segurança de Bo’er, essa criança tão preciosa, o médico se vale ainda de outra artimanha. Pede ao general que o deixe integrar sua comitiva, e que se torne padrinho do garoto. Bo’er, então, crescerá sob os olhares ciumentos desses dois homens fundamentalmente diferentes entre si. Ying, o médico, quer que Bo’er nunca venha a conhecer sua verdadeira origem e se torne comum para ser, consequentemente, invisível entre as pessoas comuns. Tu Angu quer que Bo’er desenvolva sua ambição e seu paladar pelo poder. Entre os dois, é claro que Tu Angu se mostrará mais fascinante para o menino, que assim conduzirá o médico e o general a uma inevitável medição de forças (a qual se desenrola em um outro plano ainda, mais básico, pela contraposição entre introspecção e prepotência projetada pelos dois estupendos atores escolhidos para os papéis, Ge You e Wang Xueqi).
Chen Kaige reproduz, dessa forma, não os seus sentimentos, mas os de seu pai: o desespero de ver um filho sendo cooptado por uma força muito superior à sua – a do estado – e a tristeza de perdê-lo para uma engrenagem que não tem nenhum apreço pelo indivíduo que está aliciando. Mas, como em Together, de 2002, sobre um prodígio do violino que o pai pobre e ignorante tenta sem descanso compreender e nutrir, o ponto a que o diretor quer chegar é outro – sempre, em todos os seus filmes, o reconhecimento pelo filho de qual é a legítima, a merecedora de amor, entre as várias figuras paternas. Kaige tem 60 anos, mas nunca para de pedir perdão – nem de tirar, dessa necessidade voraz, belos filmes.
Publicado originalmente na revista Veja em 02/01/2013