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PURO VENENO

Em Amor & Amizade, a inglesa Kate Beckinsale acerta o tom como protagonista de uma cínica (e deliciosa) adaptação de uma pouco conhecida novela de Jane Austen

Publicada pela primeira vez em 1871, mais de cinco décadas após a morte da autora, a novela Lady Susan revela uma Jane Austen (1775-1817) muito mais abertamente sulfúrica do que a escritora se permitiu ser nas obras que encaminhou ela própria às editoras: a personagem-título, uma beldade que já vai lá pela metade dos seus 30 anos e enviuvou há pouco, é de uma patifaria escandalosa. Mas ela é também de uma clareza de juízo a respeito de si mesma que a torna ideal para Whit Stillman, um dos mais mordazes cineastas americanos. Surpresa: Susan Vernon é ideal também para a inglesa Kate Beckinsale – uma atriz de longa carreira, mas que nunca conseguira impor uma marca decisiva a um papel. Como a manipuladora, insensível e irreprimivelmente inteligente protagonista, Kate é o maior dos muitos deleites de Amor e Amizade (Love & Friendship, Inglaterra/Irlanda/Holanda/França/Estados Unidos, 2016).

Jane Austen escreveu Lady Susan aos 19 anos, em forma epistolar: em 41 cartas trocadas entre personagens diversos, vê-se que Susan Vernon, que gosta de viver bem mas não ficou em boa situação depois da morte do marido, explora todas as possibilidades para resolver o dilema. Para a filha Frederica, de 16 anos, Susan planeja uma união com James Martin, um ricaço abestalhado (ela tem péssima opinião sobre o intelecto da filha). No seu caso, as coisas são mais complicadas: Susan adoraria ficar com Lorde Manwaring, um sonho de homem, mas existe uma Lady Manwaring no meio do caminho.

Stillman penou para adaptar a novela; é provável que Austen a tenha engavetado por, assim como o diretor, considerá-la imperfeita ao ponto de não poder ser corrigida. Stillman, porém, teve um lampejo: depurou o caldo das cartas numa narrativa que quase sempre assume o ponto de vista de Reginald DeCourcy (Xavier Samuel), sobrinho de Susan pelo lado do marido. Reginald é apresentado a Susan quando ela vai se refugiar na casa do cunhado, à espera de que esfriem os rumores sobre seu comportamento desavergonhado com Lorde Manwaring. Ao cumprimentá-la, o rapaz diz, ferino: “Lady Susan, sua reputação a precede”. Reginald posa de cético mas se fascina com Susan e passa a defendê-la com um tantinho mais de paixão do que seria apropriado. Mas não com mais paixão do que o diretor: Susan Vernon é o que se chamaria de uma boa bisca, mas talvez sua índole não seja a única culpada – ter tanto espírito e inteligência e ser obrigada a fazê-los caber em uma vida tão estreita exige que se desenvolva alguma ferramenta de sobrevivência. A de Susan é o cinismo corrosivo, assim como o foi para a própria Jane Austen. Stillman compreende, e homenageia a ambas.

Publicado originalmente na revista VEJA em 18/08/2016