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da vida das marionetes

Em Moonrise Kingdom, o diretor Wes Anderson radicaliza seu formalismo e seus maneirismos para, inesperadamente, libertar a si e aos seus personagens

Usando aqueles seus planos preciosos, que correm em perfeitas paralelas ou perpendiculares em relação à cena, o diretor Wes Anderson mostra no início de Moonrise Kingdom (Estados Unidos, 2012) outro dos meticulosos dioramas em que costuma confinar seus personagens: a casa dos Bishop na ilha de New Penzance, tão grande que a mãe (Frances McDormand) toma de um megafone quando tem de chamar o marido (Bill Murray) ou os filhos – e tão cheia de detalhes vívidos, da vitrolinha dos garotos ao tecido encorpado do vestido da menina Suzy (Kara Hayward), que desde o primeiro instante o espectador se sente como se também ele fosse agora uma peça dessa casa de bonecas.

Suzy, de 12 anos, é o detalhe que destoa: com um par de binóculos colado aos olhos, ela aparece nas portas, nas janelas, no telhado, sempre olhando para fora – para o mundo. Suzy se sente incompreendida pela família e apartada dela, e é infeliz. E logo se vai saber que é com ela que está Sam (Jared Gilman), escoteiro fugido do acampamento regido pelo comandante Ward (Edward Norton). Sam tem também ele 12 anos e é, como Suzy, um corpo estranho em seu pequeno universo: é órfão e os colegas o hostilizam. Um ano antes desse fatídico setembro de 1965, Suzy e Sam se conheceram em um evento escolar e, como mostra Anderson em um flashback de estupenda força narrativa, reconheceram-se como almas gêmeas e planejaram escapar. Antes mesmo que Ward e o policial Sharp (Bruce Willis) se deem conta de que ocorreu uma fuga, Suzy e Sam já se estão encontrando. Ele comparece com sacos de dormir, víveres e seu conhecimento da vida selvagem. Ela traz a vitrolinha, um compacto de Françoise Hardy, um gato numa cesta e vários livros. No percurso até uma pequena baía onde pretendem se refugiar (e que batizam de Moonrise Kingdom, ou “reino do nascer da Lua”), as duas crianças ensaiam uma singela iniciação amorosa e estabelecem uma tocante rotina em comum. Sua fuga só pode ser breve e simbólica, porque eles estão numa ilha. Mas sua determinação de constituir-se em uma família que faça jus à promessa dessa palavra é genuína, absoluta e ferrenha. Os adultos de Moonrise Kingdom são tristes, insatisfeitos, infantis, sós mesmo quando têm companhia e ignorantes de si próprios. São as crianças, sofridas mas ainda não entorpecidas, que têm os olhos abertos.

Desde que Anderson se lançou, no fim dos anos 90, sua combinação de preciosismo e sinceridade foi primeiro enaltecida (com toda a razão) em filmes como Três É Demais e Os Excêntricos Tenenbaums, e depois demolida (também com razão) em A Vida Marinha com Steve Zissou. Há três anos, porém, Anderson ressurgiu com um experimento radical: uma animação em stop-motion, para adultos, adaptada do conto infantil O Fantástico Sr. Raposo, de Roald Dahl. Aprofundou nessa iniciativa tanto seu formalismo visual e seus maneirismos narrativos quanto a sinceridade de sentimentos que o move – em um recurso de impacto extraordinário, ele tratava os bonecos como atores, focalizando-os em close-ups de expressividade alarmantemente humana.

Moonrise Kingdom herda esse atributo, mas com sinal invertido: os atores, aqui, agem como marionetes num teatrinho. E, no entanto, o resultado é libertador, para o criador e para os personagens. A emoção que já palpitava em Três É Demais ou Tenenbaums, e transbordava em Sr. Raposo, aqui reverbera e ressoa, e é levada com força crescente de uma cena para outra. O triste policial que, usado como amante eventual pela mãe de Suzy, encontra a realização onde menos esperava; o chefe dos escoteiros que, de arremedo de criança, se metamorfoseia no adulto que não sabia ser; os dois enamorados que, no momento decisivo, encontram a coragem de que precisam: todos os entrechos de Moonrise Kingdom convergem e culminam durante uma tempestade que põe a todos em perigo mortal ao fustigar a ilha de New Penzance (uma das muitas referências afetivas do diretor, esta à ópera cômica Os Piratas de Penzance, de Gilbert & Sullivan), mas ao cabo da qual o amor, em todas as suas formas, vai triunfar. A começar pelo amor pleno e cada vez mais repleto de autoconhecimento de Wes Anderson pela arte que ele cunhou, na qual a certa altura se perdeu e em que agora se reencontra de forma arrebatadora.

Publicado originalmente na revista Veja em 17/10/2012