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O FIM DE “ROMA”

A estupenda série da HBO vai terminar em sua segunda temporada. Mas seu legado à televisão deve sobreviver

César está morto e caído em seu próprio sangue no chão do Senado; nem seu corpo foi recolhido ainda, e as tortuosas maquinações que movimentam Roma já estão em progresso. Brutus e os senadores, que planejaram e realizaram o assassinato do tirano, dizem ter a seu lado a lei da República, segundo a qual é inadmissível que um único homem concentre tanto poder. Marco Antônio e o jovem Otávio – o sobrinho que César fez seu herdeiro em testamento – acenam com outro trunfo, mais volátil, mas ainda mais poderoso: a massa, que adorava seu líder e está a um passo de se levantar contra os seus executores. O capítulo inaugural da segunda temporada da série Roma não se contenta em retomar o enredo do ponto em que foi abandonado. Ele põe ainda mais fichas na mesa. O que o programa quer mostrar agora é a perigosa arte – ou ciência – de manobrar a plebe sem terminar na contingência de ser manobrado por ela. Roma é verdadeiramente uma glória: um programa que transborda tensão, audácia e brutalidade (o penúltimo capítulo da primeira temporada, que tratava de gladiadores, foi uma das coisas mais violentas já vistas numa tela, pequena ou grande), mas também erudição e sagacidade.

O dificílimo desafio a que a série produzida em parceria pela americana HBO e pela britânica BBC se propõe é seduzir o espectador para esse mundo e envolvê-lo com seus personagens, sem no entanto desfigurá-los para torná-los mais parecidos com o mundo e os homens de hoje. Em 44 a.C., ano do assassinato de Júlio César, estava-se ainda a mais de meio século dos primeiros sinais do surgimento de uma nova ética, com a qual o cristianismo começaria a transformar a Antiguidade Clássica. Está-se numa Roma, aqui, que desconhecia a caridade e a misericórdia, assim como o pudor sexual (a série, aliás, é completamente desavergonhada), e que por muito tempo ainda se divertiria lançando gente aos leões na arena do Coliseu. O que Roma pede, enfim, é que a plateia simpatize com um soldado como o feroz Tito Pullo (Ray Stevenson). Nesse primeiro capítulo, Pullo protagoniza uma cena deliciosa. Depois de esquartejar o marido de uma escrava por quem é apaixonado, ele se senta com ela num cenário pastoral e declara seus sentimentos: “Sei que nós começamos com o pé esquerdo, com essa história de eu matar seu marido e tal. Mas quer se casar comigo?”, diz, cheio de esperança. A moça hesita por um instante, mas, vá lá, pensa, e sela o romance com um bom beijo. A medida da habilidade com que a série transpõe seu desafio está no fato de que, como a escrava, a plateia não vacila por mais do que um momento antes de perdoar Pullo e se aliar a ele – até porque ele é o último obstáculo a que seu amigo Lúcio Voreno (Kevin McKidd), cuja mulher se suicidou antes que ele pudesse matá-la, mergulhe de vez na insanidade.

As afinidades e diferenças entre os poderosos e os comuns (que Stevenson e McKidd representam com brilhantismo) serão ainda mais importantes nesta segunda temporada. Do velório régio de César ao enterro acabrunhado da mulher de Voreno, ou da guerra em que vai se desfazer a aliança de Marco Antônio e Otávio à ascensão deste como o primeiro imperador de Roma, a série tem a partir daqui a ambição de demonstrar como se cimentou um dos legados mais ambíguos do Império Romano à posteridade: a idéia de que a massa é não apenas a fonte de todo o poder, mas ao mesmo tempo o rei e o peão nos jogos que ele engendra. A má notícia é que, apesar de a audiência ter aumentado nesta segunda temporada – que acabou de ser exibida nos Estados Unidos –, não haverá uma terceira série de episódios. A HBO calcula ter perdido 30 milhões de dólares no negócio (sem arrependimentos, afirma sua direção). Concluiu que, como a original, Roma é grande demais para prosseguir.

Publicado originalmente na revista Veja em 18/04/2007

EM “ROMA”, COMO OS ROMANOS

Autenticidade e audácia são as armas com que a série da HBO quer renovar o épico

Enquanto suas escravas cirzem ou abanam leques ao pé de sua cama, Atia, sobrinha de Júlio César, transa vigorosamente com um mercador de cavalos — e, antes que tudo termine, já garantiu um abatimento no preço de uma belíssima montaria para mandar de presente ao tio, que está terminando uma longa campanha na Gália, e assim garantir também os seus favores. A exemplo de outras produções da HBO, como Família Soprano, Deadwood ou Angels in America, a série Roma não é de recorrer a meias-palavras ou sugestões veladas, nem muito menos de se acovardar diante da complexidade de seu tema. Capturada entre 52 a.C. e 44 a.C. — os anos que abrangem a audaciosa tomada de poder por César até seu assassinato —, esta não é uma Roma de ideais elevados e togas imaculadas. De um momento de prazer na cama a um complô no Senado, tudo aqui é regido pela política, pelo interesse mercantil ou pela mera necessidade de assegurar a sobrevivência num mundo em transformação veloz — algo que o espectador moderno entende até melhor do que gostaria.

Nos doze capítulos dessa primeira temporada (já foi dado o sinal verde à produção de uma segunda), a Roma de César parece ao mesmo tempo mais autêntica e mais contemporânea do que nunca: o mármore branco de sua fabulosa arquitetura se espraia em vielas e cortiços, a beleza das roupas vai só até a barra enlameada pelo caminhar nas ruas imundas, e patrícios e plebeus não vivem na tranqüilidade de uma ordem social preestabelecida, mas em sobressalto mútuo e constante. Trata-se, enfim, de uma metrópole muito semelhante às atuais do Terceiro Mundo. Esse, aliás, é o aspecto realmente inovador da série. Quem conduz o olhar do espectador não são os poderosos, mas dois homens saídos da plebe: os legionários Lúcio Voreno (Kevin McKidd), um centurião caxias, e Tito Pullo (Ray Stevenson), um soldado cafajeste. Unidos por uma circunstância fortuita — o resgate do garoto Caio Octávio (Max Pirkis), filho de Atia, que virá a se tornar o imperador Augusto —, Lúcio e Tito retornam a Roma depois de mais de uma década de guerra na Gália com um duplo desafio. Primeiro, encontrar seu caminho num mundo que já não reconhecem mais; segundo, sobreviver ao fato de terem sido lançados no centro dos tumultuosos acontecimentos do período.

Roma estreou nos Estados Unidos em 28 de agosto, com bons índices de audiência. Mas, mesmo para a gigante da televisão paga HBO, a série representa um risco considerável. Desde Gladiador, a paciência da plateia vem sendo testada em uma fiada de épicos históricos decepcionantes, como Tróia e Alexandre. É preciso, portanto, persuadi-la de que Roma oferece algo inédito (e oferece, reconheça-se). A essa dificuldade soma-se outra — a do volume do investimento. Ao custo de 100 milhões de dólares, a primeira temporada da série é a mais cara da história da televisão (perde apenas para Band of Brothers, também da HBO, uma série fechada em dez capítulos, que consumiu 125 milhões). É fácil ver onde esse dinheiro todo foi parar. Os sets construídos nos estúdios da Cinecittà, em Roma, são os maiores em funcionamento no mundo. Espalhados por uma área de 2 hectares, incluem desde prostíbulos toscos e latrinas públicas até réplicas em escala de dois para três do Fórum, do Senado e do Templo de Júpiter. As peças de algodão, linho e seda usadas nos quase 4.000 figurinos foram importadas da Índia e tingidas a mão, uma a uma, para reproduzir a rusticidade da tecelagem da época. Como numa produção de cinema de primeira linha, todos os objetos de cena foram especialmente confeccionados — inclusive as moedas de denários, cunhadas no Vaticano. “Cada episódio de Roma equivale a um filme”, disse o ator Ray Stevenson à revista Newsweek. “A diferença é que nós somos melhores e levamos três dias, não duas semanas, para fazer uma tomada complicada”, ironiza.

A produção impecável, porém, é apenas um dos pontos do tripé em que a HBO apóia seu imenso sucesso. Os outros dois, ainda mais relevantes, são a excelência dos roteiros e a qualidade das interpretações. Há cerca de uma década, a rede transformou seus métodos. Sua cúpula hoje não se dedica a guiar e supervisionar o trabalho dos roteiristas, mas a garantir que a visão deles seja transferida na íntegra para a tela. Como não é financiada por publicidade, mas, sim, pelos seus 27 milhões de assinantes (isso só nos Estados Unidos) e pelos números assombrosos da venda de seus produtos em DVD, a rede pode se dar a esse luxo, e o aproveita ao máximo. É comum que novas temporadas de suas séries mais populares, como Família Soprano, sejam adiadas por prazo indeterminado, até que os autores se sintam satisfeitos com o que está na página. Bruno Heller, o roteirista de Roma, trabalhava no projeto desde 1998 — uma latitude impensável na televisão aberta.

A HBO tem sido regiamente compensada por sua ousadia. Estima-se que, em 2004, tenha apresentado um lucro (frise-se: lucro, não faturamento) de 1 bilhão de dólares, um recorde jamais igualado por nenhuma rede americana de televisão aberta. Ela se tornou, além disso, uma verdadeira devoradora de prêmios, e por isso não tem dificuldade em atrair talento. Seus testes de elenco para Roma, por exemplo, foram realizados ao mesmo tempo que os de outra série com a mesma premissa — a malsucedida Empire, que a rede ABC exibiu alguns meses atrás. A HBO saiu vencedora em todos os páreos. De Ciarán Hinds (Júlio César) a James Purefoy (Marco Antônio) e os excelentes Max Pirkis e Polly Walker (que brilha como Atia), seu elenco reúne vários dos nomes mais cobiçados do teatro e da televisão ingleses. Muito mais do que vestir uma toga de forma convincente, o que se exige deles é dar carne e sangue à filosofia que norteia todas as produções bem-sucedidas da rede: a de que o drama da história só se realiza plenamente quando vivido no íntimo de um personagem. Graças a esse apuro, as maquinações de Pompeu Magno (Kenneth Cranham) para trair seu antigo aliado César resultam tão cheias de risco e tensão quanto os entrechos mais comezinhos — como o inferno conjugal que o centurião Lúcio Voreno experimenta ao reencontrar, como estranha, a mulher por quem fora apaixonado uma década antes. Do Senado às mansões e aos cortiços, o que não falta em Roma é drama.

Publicado originalmente na revista Veja em 28/09/2005

“O CLÃ DAS ADAGAS VOADORAS”: AINDA MELHOR QUE “HERÓI”

Em menos de três anos Zhang Yimou retorna ao wuxia, o filme de artes marciais, e acerta em cheio

Por um capricho das distribuidoras, dois filmes feitos pelo chinês Zhang Yimou com um intervalo de quase três anos chegam com apenas uma quinzena de diferença aos cinemas brasileiros – depois de Herói, nesta sexta-feira é a vez de O Clã das Adagas Voadoras (House of Flying Daggers, China/Hong Kong, 2004) entrar em cartaz. Como se corre o risco de achar que assistir a ambos é ver mais da mesma coisa (até porque os dois foram indistintamente propagandeados como filmes de artes marciais), cabe avisar que há aí um engano: Clã não é só um bocado diferente de Herói. É também superior. No ano de 859, nos estertores da dinastia Tang (618-907), chega aos ouvidos de dois policiais que Mei (Zhang Ziyi), a nova cortesã da cidade, é na verdade uma agente da organização de guerrilheiros do título. Cada um a seu modo, eles iniciam uma investigação. Jin (o sino-japonês Takeshi Kaneshiro), que é jovial, inconseqüente e conquistador, faz-se passar por freguês do bordel e agarra Mei – que é cega – à força. Seu companheiro Leo (Andy Lau) chega para dispersar o tumulto arranjado e submete Mei a uma prova destinada a apurar se ela é mesmo a habilíssima dançarina que diz ser. Com o talento da cortesã devidamente demonstrado numa seqüência atordoante, os policiais fazem com que ela acredite estar livre, para assim os conduzir  ao quartel-general do clã. Jin a escoltará, dizendo-se apaixonado por ela, e Leo os seguirá a distância. Durante o trajeto, Jin e Mei se apaixonarão de fato, a identidade verdadeira de Leo será descoberta e, acima de tudo, O Clã das Adagas Voadoras se revelará um encontro sensacional entre a exuberância do cinema chinês e o rigor do filme de samurai – em especial da variedade celebrizada pelo diretor Akira Kurosawa, de quem Yimou é grande admirador.

Há menos de fantasioso do que se possa supor nessa história. A dinastia Tang de fato se esfacelou sob a ação de milícias rebeldes. Esse foi também o período de influência mais marcante da China sobre o Japão. Yimou, contudo, inverte a mão desse trânsito. Aqui é a China, sempre tão impermeável ao que vem de fora, que se dobra ao Japão. Se em Herói o diretor homenageava Kurosawa na estrutura emprestada de Rashomon, em Clã ele o faz de todas as maneiras possíveis, do tem – o dilema entre liberdade individual e lealdade – às cores e composições impressionistas. Mesmo as lutas, sempre lindas, ganham outra força. Em vez de mera exibição de virtuosismo, elas traduzem o crescendo da ligação entre Jin e Mei e o destino trágico para o qual esse romance se encaminha. Na seqüência final, quando a ação é parcialmente encoberta por uma nevasca que corta a tela, o que o diretor quer é que a platéia se lembre de uma cena clássica – a da luta sob a chuva em Os Sete Samurais. Talvez a própria fluidez da personalidade de Yimou, que parece ser um homem diferente a cada filme que faz, venha a impedir que ele ocupe um lugar comparável ao de Kurosawa na história do cinema. Mas, ao menos por um momento, ele chegou bem perto.

Publicado originalmente na revista Veja em 06/04/2005

“HERÓI”: O TRIUNFO DOS CHINESES VOADORES

É quase excessiva a beleza da primeira incursão de Zhang Yimou nas artes marciais

Um membro da equipe ficou de prontidão no interior da Mongólia, encarregado de dar o alerta no momento em que as folhas de uma floresta de carvalhos atingissem seu melhor amarelo outonal. Quando a hora chegou, o diretor Zhang Yimou deslocou o time inteiro para a locação e colocou-o para trabalhar numa tarefa surreal: classificar segundo sua tonalidade todas as folhas que caíssem das árvores. As mais belas serviriam para passar em frente ao rosto das atrizes Maggie Cheung e Zhang Ziyi, as de primeira linha voariam em torno delas, as de segunda ficariam mais para o fundo do cenário e as restantes seriam devolvidas ao chão. O saldo desse perfeccionismo extremado é uma das muitas cenas sublimes de Herói (Hero, China/Hong Kong, 2002), a primeira incursão de Yimou, um dos expoentes dos festivais internacionais, nas artes marciais. Herói quebrou o recorde de audiência na China, concorreu ao Oscar de filme estrangeiro em 2003, acumulou uma bilheteria mundial de quase 180 milhões de dólares e animou Yimou a voltar a essa seara com o ainda superior O Clã das Adagas Voadoras, que deve estrear no Brasil em 8 de abril. Se esse fenômeno merece uma ressalva, é que sua beleza às vezes excessiva distrai a atenção do que mais esteja em jogo no filme.

Herói revisita um episódio central para a história da China: a unificação do país pelo rei de Qin, que no século III a.C. submeteu as monarquias rivais e tornou-se o primeiro imperador – além de construtor da Grande Muralha. No filme, o rei recebe um oficial de província (Jet Li) que acaba de eliminar os assassinos que ameaçavam seu trono, e pede para ouvir sua narrativa. Seguem-se então três versões de como o obscuro Sem Nome derrotou os lendários Céu (Donnie Yen), Espada Quebrada (Tony Leung) e Neve que Voa (Maggie Cheung). Cada versão é encenada em uma cor diferente, e todas elas servem de mote para o maior atrativo do filme: as lutas estupendamente coreografadas, que vão do estilo mais ortodoxo ao mais lírico, como um combate travado sobre as águas de um lago. Tudo o que há de drama em Herói está expresso na atmosfera diversa de cada uma das lutas e no êxtase dos cenários, figurinos e cores. Essa, enfim, é a habilidade que responde pelo prestígio de Yimou: mais do que qualquer outro cineasta, ele sabe mimetizar um gênero de forma tão completa que, ao final, estabelece para ele um novo patamar.

Não deixa de ser irônico, porém, que Yimou, que passou seus dezoito anos de carreira às turras com os censores chineses por causa de filmes como Lanternas Vermelhas, A História de Qiu Ju e Tempos de Viver, tenha adotado o rei de Qin como pivô de Herói. Os massacres promovidos pelo monarca foram tão extensos e brutais que, apesar de seus feitos, sua memória persistiu em relativa desgraça até ser reabilitada por Mao Tsé-tung, que viu nele uma inspiração para a Revolução Comunista de 1949. Como personagem, o rei de Qin tem o selo de aprovação do Partido – e o tratamento dado a ele por Yimou, de um déspota iluminado e incompreendido, só fez reforçar a impressão de que o diretor teria se juntado ao inimigo. Herói talvez seja, assim, politicamente incorreto. Mas, como espetáculo, está acima de qualquer suspeita.

Publicado originalmente na revista Veja em 23/03/2005

NO AMOR VALE TUDO. ATÉ O ÓDIO

Com o implacável Closer – Perto Demais, o diretor Mike Nichols expõe a crueldade do mais decantado dos sentimentos

É uma daquelas tomadas clássicas: em meio à multidão que caminha pela calçada em câmera lenta, aos poucos se destacam um rapaz e uma moça – que vão se conhecer, trocar diálogos inteligentes como só um bom roteirista poderia escrever, apaixonar-se e então desentender-se. No sentido inverso ao óbvio, porém, Perto Demais (Closer, Estados Unidos, 2004) não vai devolvê-los à felicidade romântica instantes antes dos créditos finais. Bem ao contrário. A stripper Alice e o escritor de obituários Dan (Natalie Portman e Jude Law), que se envolvem a partir do atropelamento dela numa rua de Londres, vão se torturar e trair um ao outro, em reflexo, causa e efeito do processo que Anna e Larry (Julia Roberts e Clive Owen), os dois outros personagens do filme, também atravessam. Decerto esses dois casais, que em vários momentos se separam e se recombinam, vivem interlúdios de contentamento. Mas não é desses que o diretor Mike Nichols, que adapta a peça homônima do inglês Patrick Marber, quer tratar. Perto Demais é um filme sobre começos, finais e recomeços. Ou, mais precisamente, sobre como o amor é em grande medida uma ilusão que, ao ganhar alguma nitidez, deixa de corresponder à expectativa e passa a exigir uma nova miragem de que se alimentar. A falha, postulam o autor e o diretor, não é do sentimento, mas de quem o sente. Como um não existe sem o outro, entretanto, tem-se aí uma charada, que Nichols destrincha com um rigor implacável como ele não tinha coragem de exercitar desde seu primeiro filme, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, de 1966.

Não que os quatro personagens tenham visões similares sobre o que esperam de um relacionamento. Alice, a garota que foi para Londres fugir de alguém que a maltratava, se agarra a Dan como a uma oportunidade de amor e devoção eternos. Dan tira de Alice o que ela tem de ainda mais atraente que a beleza: sua história infeliz, que ele usa num livro – o qual, em seus planos, vai removê-lo de sua insignificância e transformá-lo no homem que ele quer ser. Quando ainda se acredita às vésperas desse sucesso (que não se realizará), Dan conhece a fotógrafa Anna, americana como Alice e divorciada. Anna é uma mulher sem subterfúgios e aparentemente sem carências. Como ela não precisa dele, é ela que Dan passa a desejar. E, em sua obsessão, ele a entrega sem querer ao médico Larry, um homem que não vê insulto em sua masculinidade e em sua franqueza e que, por causa dessa honestidade, é o único aqui com algum poder transformador. Quando Dan rouba Anna dele, Larry maquina um plano para recuperá-la – e, não menos importante, para destruir a virilidade do adversário – que poderia ser descrito como monstruoso, não fosse ter nascido de um desespero tão legítimo. Não há nudez ou sexo em Perto Demais, mas a exposição do íntimo dos personagens é tão cruel, e a linguagem que eles usam tão forte e direta, que a sensação é de explicitude total. Ver Julia Roberts, por exemplo, sem maquiagem e com todas as imperfeições físicas e de caráter à mostra, contando em detalhes para o marido o que fez com o amante na cama, é uma experiência tão incômoda quanto revigorante.

Jude Law, que faz o pusilânime Dan, é o lado mais fraco desse quarteto. Julia Roberts e Natalie Portman brilham, e Clive Owen, por sua vez, ofusca. Sua atuação como Larry é tão vulcânica e impetuosa que David Thomson, o mais prestigiado dos críticos britânicos, escreveu que gostaria de montar uma temporada inteira dos textos do dramaturgo Harold Pinter só para ele. Essa habilidade, a de fazer os atores ir além do que se espera deles e mais um tanto, sempre foi o ponto forte do alemão naturalizado americano Mike Nichols. Desde a década de 70, porém, o diretor vinha diluindo seu estilo numa impostura decepcionante de sofisticação. Mas, desde que dirigiu Emma Thompson em Wit e adaptou Angels in America como uma minissérie para a rede HBO, Nichols reencontrou sua verve. Aos 73 anos, e numa altura de sua carreira em que ninguém mais esperava uma ressurreição, ele acaba de fazer um dos melhores filmes americanos dos últimos anos.

Publicado originalmente na revista Veja em 19/01/2005

“O IMPERADOR E O ASSASSINO”: TUMULTUADO E COMPLICADO COMO A GUERRA

Passado no século III a.C., o épico de Chen Kaige pode ser entendido como uma parábola sobre a ascensão de Mao Tsé-tung

Em O Imperador e o Assassino (Jing Ke Ci Qin Wang/The Emperor and the Assassin, China/França/Japão, 1999), o diretor chinês Chen Kaige parte de um episódio histórico real e supera até seu trabalho mais célebre, Adeus Minha Concubina, de 1993. No século III a.C., o rei Ying almeja unificar a China e tornar-se seu imperador. Para tanto, manda sua mais querida concubina (a bela Gong Li) contratar um matador. O objetivo é forjar uma tentativa de assassinato: salvando-se, o imperador parecerá invencível a seus inimigos. Só que o soberano se torna cada vez mais truculento, o que enche a concubina de repugnância. Pior: ela se apaixona pelo assassino (Zhang Fengyi, excelente). O filme não é fácil de acompanhar, mas cresce em interesse a cada minuto. Visualmente, é um espetáculo, tão estranho quanto opulento. E, por fim, pode ser entendido também como uma parábola sobre a ascensão do líder comunista Mao Tsé-tung.