O Rastro

Terror nacional sobre a crise da saúde assusta bem menos do que o noticiário

Quem vê muito terror acaba criando calos: dá um trabalho danado assustar o espectador fiel. Mas, em geral, ele sente pelo menos um calafrio quando o filme vai indo no rumo certo. O nacional O Rastro, porém, não me fez nem cócegas. Talvez por eu estar tão calejada. Ou talvez por faltar a ele um entendimento mais clínico (perdão pelo trocadilho) do que é o medo – na definição básica, a emoção que a gente sente quando algo foge ao normal de maneira que não pode ser explicada nem controlada. Existe aí, portanto, um elemento decisivo: o normal. Sem contraposição com ele, a coisa não funciona. E, no filme do diretor J.C. Feyer, falta essa contraposição. O roteiro, a direção, a fotografia e as atuações andam sempre na mesma mão: tornar tudo sinistro e cheio de presságios. Não há cena que não seja fotografada com luz lúgubre, os enquadramentos fora de esquadro e mudanças estranhas de foco. Não há diálogo que não seja sussurrado em tom agourento. Não há personagem que não seja suspeito ou transtornado. Ou seja, não há contraste – e nada é mais desfavorável ao medo do que a monotonia.

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João (Rafael Cardoso) é um médico que virou burocrata da Secretaria de Saúde estadual do Rio, e sua missão é tirar os últimos pacientes de um hospital caindo aos pedaços, e então desativá-lo. O diretor do hospital e os outros médicos se revoltam contra o fechamento de tão necessária instalação pública, e resistem (como bem observou o amigo Jerônimo Teixeira há alguns dias, no seu blog Intervenção, o cinema nacional adora a ideia de “resistência” – contra qualquer coisa, com e sem motivo). Para esse grupo de indignados, o teto quase desabando, as paredes imundas, os equipamentos quebrados e as alas inteiras interditadas aparentemente são mero detalhe. Durante a transferência dos pacientes, porém, uma menina some – ninguém sabe e ninguém viu; e um médico se suicida. Todos concordam que o suicídio é uma fatalidade, e ninguém parece interessado em achar a menina (“esqueça isso”, diz a esquiva chefe da UTI, interpretada por Claudia Abreu; “não pense mais nisso”, diz a mulher grávida de João, interpretada por Leandra Leal). João pira no lance, coisas acontecem.

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No papel, é boa ideia usar a pavorosa crise do Estado do Rio como chave para um terror. Os melhores filmes de terror, hoje em dia, partem de comentários sobre o que é concreto e palpável: a falência de Detroit e a adolescência à deriva em Corrente do Mal, a repressão sexual e a miséria iminente  em A Bruxa, a insegurança das famílias com problemas financeiros nos dois Invocação do Mal, o racismo velado no ótimo Corra! (que, para azar de O Rastro, também acaba de estrear nos cinemas) – ou a corda-bamba da classe média em um excelente terror nacional como Trabalhar Cansa, dos diretores Marco Dutra e Juliana Rojas. Todos esses filmes, porém, têm muitíssimo clara a ideia de que o normal, corriqueiro e banal é o ponto de saída imprescindível, e partem de uma ambientação naturalista. Quando algum elemento estranho se infiltra nela e destoa, você sente a força toda dessa dissonância, para valer. Como em O Rastro não há essa linha de base do normal – ou vai ver que é no Brasil que nem existe mais a normalidade –, tudo vira mais da mesma coisa. A deterioração dos hospitais cariocas (do páis todo, na verdade) que está todo dia no noticiário é bem mais assustadora do que qualquer coisa na trama de O Rastro – e ainda sai na frente do filme por fazer você se pôr não no lugar do médico, mas sim no lugar do paciente, a vítima maior desse horror.


Trailer


O RASTRO
Brasil, 2016
Direção: J.C. Feyer
Com Rafael Cardoso, Leandra Leal, Claudia Abreu, Felipe Camargo, Jonas Bloch, Domingos Montagner, Alice Wegmann
Distribuição: Imagem

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