Invocação do Mal 2

O medo que pega e não larga

Costumo dizer que o terror é até mais pessoal do que o humor: é a bagagem que cada um carrega consigo para o cinema que vai em grande medida determinar se o que se sente no escuro é tédio, susto ou medo. Pois bem, esta pessoa aqui, uma fã calejada de filmes de terror e hoje em dia uma espectadora quase imune aos efeitos que eles provocam, sentiu não só medo, como pavor, em Invocação do Mal 2. E, no entanto, em vários colegas meus que foram à mesma sessão, o filme não fez nem cócegas.

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Ainda que eu não tenha como prever as reações alheias a esta sequência do filme de 2013, porém, posso afirmar com segurança que, desde que deixou para trás os sustos fáceis de Jogos Mortais e Sobrenatural, o diretor James Wan se revelou um dos grandes talentos do gênero. Malaio de origem chinesa criado na Austrália e hoje radicado nos Estados Unidos, Wan, de 39 anos, tem uma sensibilidade para o medo parecida com a de David Robert Mitchell, de Corrente do Mal, e Robert Eggers, de A Bruxa. Mas, se não ganha deles em originalidade, supera-os em desenvoltura. No primeiro Invocação e neste segundo, o mal é algo insidioso, que vai aos poucos se intrometendo na normalidade até aniquilá-la – e o senso de ritmo com que Wan articula esse crescendo é virtuosístico, assim com sua câmera, sempre colocada no lugar certo para mostrar apenas o suficiente e deixar um bocado de espaço, no quadro, para o espectador completar com sua imaginação (e a minha, ao menos, vê sempre as piores coisas quando deixada assim à solta).

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Novamente estão aqui em evidência Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga), os mais célebres caça-fantasmas americanos, em mais um caso fartamente noticiado na época em que ocorreu. Entre 1977 e 1978, no subúrbio de Enfield, zona norte de Londres, a casa da família Hodgson, moradia de uma mãe e seus quatro filhos, foi alvo de incontáveis manchetes em tablóides. Eis a crônica do chamado “poltergeist de Enfield”, que Wan segue fielmente no filme: depois de ser várias vezes acordada no meio da noite pela filha Janet, de 11 anos (Madison Wolfe), com episódios de sonambulismo ou relatos de acontecimentos estranhos, a dona de casa Peggy Hodgson (Frances O’Connor) começou a dar crédito às queixas das crianças – viu uma cômoda andar sozinha no quarto de Janet seguidas vezes, enquanto pancadas muito sonoras podiam ser ouvidas pelas paredes. A polícia foi chamada; a dupla de patrulheiros saiu correndo depois de ouvir novas pancadas e ver uma cadeira de cozinha exibir o mesmo comportamento petulante da cômoda. Mas a ocorrência foi registrada, a imprensa ficou sabendo, e o circo começou – ao mesmo tempo em que os acontecimentos estranhos se multiplicavam em frequência e intensidade.

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De acordo com testemunhos como o de Maurice Grosse (Simon McBurney), um industrial filiado a sociedades de pesquisa do oculto, ele em diversas ocasiões viu móveis pesados, como sofás ou mesas de cozinha, serem arremessados contra as paredes, ou observou objetos girando loucamente no ar. Janet levitava, era jogada no ar e falava com a voz rouca e o sotaque pesado de um velho, que a certa altura teria se identificado como Bill Wilkins, antigo morador do imóvel – e muito disso teria sido gravado, filmado e fotografado. Digo “teria sido” por razões óbvias: embora sejam um tanto arrepiantes, os registros de áudio e imagem deixam margem a uma infinidade de interpretações. Para a policial feminina que primeirou atendeu o caso e para Maurice Grosse, que décadas depois continuavam confirmando seus relatos, esses registros seriam provas de atividade sobrenatural; para Anita Gregory (Franka Potente), outra estudiosa que acompanhou o desenrolar do episódio, eles não passariam de falsificações grosseiras.

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O que importa em um filme de terror, porém, é que no decorrer dele considere-se a possibilidade do sobrenatural, e que ela persista até o desfecho. E, nesse ponto, Invocação 2 é exemplar. A fragilidade de Peggy Hodgson e seus filhos é tocante; o pai largou a família, o dinheiro acabou, a casa é uma manifestação física do abandono: as paredes parecem vivas de tanto mofo, a tinta está descascando, os carpetes estão gastos e os móveis, no osso. Os canos vazam, as luzes não se acendem, o porão está inundado de água suja. Peggy e as crianças estão literalmente naufragando. A hipótese de que eles tenham sucumbido ao desespero e embarcado numa espécie de loucura familiar é de partir o coração – e James Wan nunca a tira do jogo completamente. Uma cena sensacional, por exemplo, é aquela em que Ed Warren entrevista a entidade que naquele momento estaria ocupando o corpo da pequena Janet: ambos estão em quadro, mas o foco está no rosto limpo e calmo de Ed; Janet, no canto direito da tela, não passa de um vulto embaçado.

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Dependendo das convicções pessoais do espectador, a outra hipótese, a de possessão, nem mesmo existe. Mas – e é esse “mas” que um bom cineasta de terror explora naquelas duas horas de projeção – digamos que ela seja possível, e que por Peggy e as crianças serem assim tão vulneráveis tenha sido fácil a algo de ruim ocupar sua casa. Essa é a ideia que assusta, a de que mesmo as fraquezas mais inocentes e involuntárias possam servir de convite ao mal. É por causa do talento de Wan para expandir essa zona de incerteza, e por causa de sua empatia para com figuras tão abatidas e exaustas quanto os Hodgson, que Invocação do Mal 2 me pegou, e até agora ainda não me largou.


Trailer


INVOCAÇÃO DO MAL 2
(The Conjuring 2)
Estados Unidos, 2016
Direção: James Wan
Com Vera Farmiga, Patrick Wilson, Madison Wolfe, Frances O’Connor, Lauren Esposito, Benjamin Haigh, Simon McBurney, Simon Delaney, Franka Potente, Maria Doyle Kennedy, Patrick McAuley
Distribuição: Warner

19 comentários em “Invocação do Mal 2”

  1. Indico a minissérie de três episódios, que passou o ano passado na Inglaterra, chamada “The Enfield Haunting” que foi mais fiel ao acontecimento.

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  2. Olá Isabela! Somente uma observação: o relato do filme é fiel, exceto quanto à presença dos Warren. Eles não participaram desse caso; na verdade, foram barrados antes de começar. Abs!

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  3. Otimo filme. Sempre bocejei em filmes de terror mas esse me surpreendeu. A estrutura do cinema ajudou d-box do cinemark. Cadeiras com movimento realmente provocaram bons sustos em todos.

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  4. Adoro afiar olhar com uma boa crítica. Cineminha amanhã garantido.
    Mas a pergunta essencial ainda persiste: afinal, é ou não é o Marilyn Manson?

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      1. Yup. Definitivamente, é ele. Vestido de freira. Aterrorizando as criancinhas. Sweet dreams: https://www.youtube.com/watch?v=QUvVdTlA23w

        Algumas notas:
        – Fiquei encantado pelo trabalho da Madison Wolfe, que fez a Janet. É para ficar de olho, pois pode vir uma grande atriz aí.
        – Pena que o filme me perdeu no final. Dei risadas com alguns nonsenses, como aquele gordinho que parecia querer fazer palitinhos de dente a partir de uma porta, ao invés de simplesmente… deixa prá lá. O “plano” da entidade é contraditório e forçado…

        Mesmo assim, valeu ter visto. E obrigado pela crítica.

        Valak morghulis, btw.

        PS: não quer colocar o Disqus aqui, não? Ele é tão melhor para comentar e interagir… E geralmente a instalação é super fácil.

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  5. Isabela, acabei de ver e concordo praticamente com tudo escrito aqui. A cena do Ed entrevistando o espírito é IMPECÁVEL, assim como tantas outras cenas muito caprichadas por esse diretor maravilhoso. A sequência em um plano só que apresenta o case desta família dentro da casa é de um capricho que eu (tendo visto e amado Invocação do Mal 1) já esperava ver, mas ao mesmo tempo tinha medo de não ver. O meu pesar neste filme é que o Wan infelizmente exagerou na personificação dos demônios e nas tais cenas surreais. O surrealismo feito somente pra assustar parecia somente um plus no primeiro filme (vide cena da bruxa segurando a Anabelle), mas neste aqui, ele ganhou mais espaço e até tomou todo o desfecho – fictício – do final. Fiquei triste com o destaque que este recurso teve, mas a maravilhosa direção e a fidelidade do Wan na sua versão desta história valem (e muito) o ingresso.

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    1. Excelentes suas considerações, Lucas! O filme é de primeira, mas, realmente irrita a freira à la Marilyn Manson e o surrealismo exagerado que compromete e muito o final. Mas a hora que vi as imagens reais da família… meu Deus, de congelar a espinha!!

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    1. Gustavus ,te digo com toda certeza…o outro lado existe, pesquise no google o caso de Anneliese Michel,minha irmã passou pelo mesmo problema e não me tornei religioso por causa disso mas…as coisas que vi e ouvi mudaria a opinião de qualquer cético no mundo,pois o rosto da minha irmã se transformava ,a voz se masculinizava fora objetos que se mexiam sem ninguém tocar neles;te garanto que existe o outro lado porém só saberemos quando chegar a nossa hora.

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