Aos poucos, a fachada impressionante de “Mansão Bly” mostra suas trincas

Notável nos primeiros episódios, a nova série do Mike Flanagan de “A Maldição da Residência Hill” gira em falso na segunda metade e cai no banal

Sou grande admiradora de A Maldição da Residência Hill (leia aqui a crítica), que o criador Mike Flanagan lançou há quase exatos dois anos na Netflix. Trabalhando a partir de um livro clássico do terror, The Haunting of Hill House, lançado em 1959 pela americana Shirley Jackson e muitas vezes adaptado, Flanagan conseguiu ao mesmo tempo respeitar o original, traduzi-lo para o presente, inovar no tratamento do gênero em séries e – essencial – causar medo, inquietação, mal-estar e também pesar. Agora, Flanagan se propõe fazer tudo isso com um livro ainda mais célebre: A Volta do Parafuso, uma noveleta publicada pela primeira vez em 1898 por Henry James, um dos maiores preciosistas da prosa em língua inglesa. Estou com o livro aqui na mão; na minha edição da Penguin, ele tem rapidíssimas 116 páginas – mas, na adolescência, precisei de um punhado de tentativas até conseguir passar das primeiras delas: logo no segundo capítulo, James apresenta uma imagem tão inatural e aterradora que me paralisava. A Volta do Parafuso é prato cheio para a psicanálise. Na história da governanta que vai cuidar de duas crianças órfãs, Miles e Flora, na remota Mansão Bly, e convence-se de que eles são presa de um ou mais fantasmas malévolos, Henry James entretece o sobrenatural e o fantasmagórico com o psicológico – em particular com repressão e desejo sexual – de maneiras que nunca vão deixar de dar pano para manga. E, nos primeiros episódios, A Maldição da Mansão Bly, a nova série de Flanagan para a Netflix, me pareceu mesmo notável. Flanagan trabalha com vários diretores, mas os escolhe muito bem; nos seus episódios iniciais, Mansão Bly é um primor no uso do maior trunfo que pode haver no terror – a limitação do ponto de vista do espectador. É elegante, fluida, discreta, e é também contaminada por algo nefasto, algo que parece impronunciável. Tem alguns atores fortíssimos, também, como T’Nia Miller, que faz a zeladora da casa, a sra. Grose, e Rahul Kohli, no papel do cozinheiro Owen. Isso sem falar em Benjamin Evan Ainsworth e em Amelie Bea Smith, que fazem Miles e Flora.

Infelizmente, lá pelo quarto ou quinto episódio (são nove no total) essa fachada impressionante começa a mostrar as suas trincas, provocadas por fatores diversos. Por exemplo, a narração de Carla Gugino, que começa a se tornar excessiva (o que é culpa do roteiro, não dela), acentuando a sua monotonia. Ou ainda a atuação de Victoria Pedretti como a jovem governanta Dani. Vinda de Residência Hill (assim como Gugino e como Henry Thomas, outro que está fora de chave), Pedretti não dá conta da guinada de Mansão Bly para o dramático; começa a parecer pouco substantiva, quase banal. Mas o problema está é nas fundações de Mansão Bly mesmo – sobretudo na decisão de Flanagan de construir outros andares sobre o edifício que Henry James deixou. A ideia dele é até bastante interessante – não vou dar spoilers –, mas não a maneira em espiral como ele executa essa ideia. Era para ser hipnótico; acaba ficando repetitivo e aborrecido e, sinceramente, com jeito de encheção de linguiça.

Pior: fica trivial, graças à decisão de incluir um fantasma de computação gráfica que deveria ser terrível (com o tempo, as feições do fantasma foram se apagando), mas parece tão-somente plastificado. A meu ver, o aspecto do fantasma não é a única falha dele. Trata-se de um fantasma sem memória e que não nota mais o passar do tempo – exatamente as duas coisas que poderiam constituir uma tortura para uma alma tão apegada ao lugar no qual viveu que não consegue deixá-lo nem permitir que outros vivam ali. O fantasma dorme longos sonos, acorda, mata, adormece longamente de novo. É um autômato, não um espírito martirizado pelo que não pode mais alcançar. Minha ideia de um além tenebroso é bastante diferente. É a sensação de ineficácia, solidão e obsolescência do Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, ou a perplexidade e a incomunicabilidade de Casey Affleck (coberto por um lençol, à moda antiga) em Sombras da Vida (no original, A Ghost Story), que não chegou a ser lançado nos cinemas aqui e agora está disponível na Netflix. À deriva nas décadas,  extraviado no tempo, ele não sabe como pôr fim a essa eternidade. Isso, sim, é de dar medo.

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