divulgação

Andrzej Wajda

Um cinema que foi história, fórum e espetáculo

divulgação

Morreu ontem, domingo dia 9 de outubro, aos 90 anos, o polonês Andrzej Wajda, um cineasta de talento excepcional que, com sua inquietude, seu senso artístico e sua visão transformadora do cinema, deu uma contribuição decisiva para um país que saiu do trauma da II Guerra direto para a incorporação ao bloco comunista. Gostaria de falar dele com mais detalhe, mas a agenda do dia não vai dar deixar. Vai aqui então, pelo menos, uma resenha do grande Katyn, filme que ele rodou aos 83 anos e que pela primeira vez abordou um episódio central da história da Polônia no século XX – episódio de que Wajda e sua família foram vítimas diretas.

Aliás, Katyn está disponível na Netflix e também no Looke.


Sob a névoa da guerra

Em Katyn, Andrzej Wajda reabre uma ferida que ainda hoje dói nos poloneses: o massacre de 20 000 oficiais pelos soviéticos, em 1940. Mas por que só um octogenário se interessou em tratar dela?

divulgação

Na primeira cena de Katyn, dois grupos de refugiados encontram-se no meio de uma ponte, em algum lugar da Polônia. Parte deles vem do oeste, fugindo dos invasores nazistas, enquanto a outra parte vem do leste, tentando escapar dos invasores soviéticos. Ou seja: chegou-se ao ponto onde não há mais saída – e essa é a imagem ao mesmo tempo literal e metafórica da terrível má sorte que desabou sobre os poloneses em 1939. Imprensada pela geografia entre os dois regimes totalitários mais cruéis do período, a Polônia virou um palco para as piores tensões da II Guerra. Sua invasão pelos nazistas foi, primeiro, o estopim do conflito. Depois, enquanto o farsesco pacto de não agressão entre Adolf Hitler e Josef Stalin vigorou, o país se viu repartido entre dois exércitos de nacionalidades e métodos diferentes, mas objetivos idênticos – quebrar a espinha do ocupado e ensaiar as práticas expansionistas que logo estenderiam pelo mundo. Finalmente, quando ficou claro que nenhum acordo poderia conter o choque entre as ambições de Hitler e Stalin, o país passou a ser sistematicamente eviscerado pelos dois adversários. Um episódio central simboliza esse processo: em abril de 1940, os soviéticos fuzilaram cerca de 12 000 oficiais poloneses na floresta de Katyn. Contando-se os fuzilamentos em outros campos de prisioneiros, o total de assassinados chegou a 20 000. Muitos destes eram reservistas e atuavam como engenheiros, técnicos ou cientistas. Sem eles, calculava Stalin, seria muito mais difícil à Polônia reerguer-se (Hitler, por sua vez, já se havia incumbido do extermínio dos intelectuais poloneses). Em 1943, quando as valas comuns foram descobertas, os nazistas aproveitaram-se ao máximo delas para propaganda antissoviética. Em menos de dois anos, porém, a Alemanha foi derrotada, e a Polônia caiu na órbita da União Soviética – a qual reescreveu a história, atribuindo o massacre de Katyn aos nazistas e alardeando-se ser a verdadeira esperança dos poloneses. A Polônia inteira sabia tratar-se de uma mentira; mas quem o dissesse enfrentaria tortura, exílio ou morte. Eis, então, como uma nação foi refundada sobre uma farsa.

divulgação

Essa é a história que o grande diretor polonês Andrzej Wajda conta, pela primeira vez na história do cinema de seu país, em Katyn. O pai de Wajda foi uma das vítimas do massacre, e durante anos sua mulher e filho aguardaram que ele voltasse. Quando souberam de sua morte, mal puderam cumprir o luto. Logo, como todos os outros parentes dos fuzilados, tiveram de assumir a falsidade. O massacre e sua subsequente dissimulação feriram a Polônia até a alma: como Wajda mostra em seu filme, numa brilhante recriação não apenas do episódio, mas da dimensão emocional que ele adquiriu, o ocorrido em Katyn pisoteou a identidade dos poloneses, violentou sua história e anulou, por décadas, sua esperança de um futuro livre. Se esse futuro não tivesse afinal se concretizado, Katyn não poderia existir, claro. Mas é intrigante que só Wajda, que acaba de completar 83 anos, tenha se ocupado de reabrir essa ferida para começar a arejá-la. Intrigante, mas também sintomático: Wajda é um dos remanescentes de uma fraternidade de diretores que, iniciando a carreira entre o fim da II Guerra e a década de 70, imaginou o cinema não apenas como espetáculo – aspecto que a maioria deles nunca menosprezou  –, mas também como um novo fórum, de alcance e apelo sem precedentes.

divulgação

Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Bernardo Bertolucci, Luchino Visconti, Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, François Truffaut, Louis Malle, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Stanley Kubrick, para ficar apenas nos nomes mais óbvios, foram alguns dos expoentes desse grupo que Wajda integra desde sua estreia, na década de 50, com a “Trilogia da Guerra”, formada por Geração, Kanal e Cinzas e Diamantes. Nem todos os diretores surgidos nesse período de transformação se dedicaram a temas políticos ou ideológicos, como Wajda quase sempre continuou a fazer. De sexo a relações humanas, de identidade cultural a filosofia, todas as grandes questões encontraram um espaço nesse fórum. A base comum para esses cineastas e os filmes que eles produziram, porém, é clara: o espírito inquisitivo e a aspiração de intervir em seu tempo. Esse é o espírito que abriu para eles um lugar não apenas na história do cinema, mas no cânone cultural contemporâneo. E esse é também o espírito que move Wajda a dissipar a névoa da guerra em Katyn. Se não se trabalhar para encontrar no passado seu sentido verdadeiro, argumenta o filme, tudo o que repousa sobre ele será também em alguma medida uma falsificação.

divulgação

O mais triste em Katyn é quanto ele é solitário em sua ambição. Outros veteranos como Wajda continuam a fazer um cinema de busca e indagação, a exemplo de Clint Eastwood e Werner Herzog. Mas, nas fileiras de diretores que despontaram a partir da década de 80, os casos de inquietude intelectual são escassos – Pedro Almodóvar, na Espanha; Paul Thomas Anderson, de Sangue Negro, nos Estados Unidos; Cristian Mungiu, de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, na Romênia; Florian Henckel von Donnersmarck, de A Vida dos Outros, na Alemanha. Wajda, que não é nenhum esnobe – uma de suas críticas ao cinema europeu é que ele em geral se recusa a aprender com o americano como conduzir a emoção da plateia –, tem uma teoria sobre o problema. “Certa vez, perguntei a Kurosawa como ele conseguira interpretar Macbeth, de Shakespeare, de maneira tão profunda e acurada em Trono Manchado de Sangue“, contou o polonês em uma entrevista recente à revista Sight & Sound. ” ‘Senhor Wajda, tive uma educação clássica em Tóquio’, ele me respondeu. Bergman e Fellini também tinham esse tipo de formação – assim como muitos de seus espectadores. Hoje, as escolas não ensinam mais esses valores.” Se o diagnóstico de Wajda estiver correto, portanto, não são o cinema ou os cineastas que estão menores. É a própria cultura que está perdendo seu sentido de continuidade e acumulação e, assim, se apequenando. O cinema, afinal, não depende só de quem o faz para provocar impacto: depende igualmente de quem o vê. Katyn prova que essa contração não é necessária. O filme de Wajda tem uma experiência fundamental a transmitir sobre uma calamidade que o presente está longe de erradicar – a dos regimes ditatoriais e como eles desfiguram não uma liberdade abstrata e sim cada indivíduo, até seu âmago. Mas ele a transmite com arte, e espetáculo, e emoção.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 08/04/2009
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2009

KATYN
Polônia, 2007
Direção: Andrzej Wajda
Com Andrzej Chyra, Maja Ostaszewska e Artur Zmijewski

Uma consideração sobre “Andrzej Wajda”

  1. PARABÉNS. Concordo em 99% com você

    Só uma discordância;

    Pedro Almodóvar NÃO É NEM NUNCA FOI um caso de “inquietude intelectual” — ele é tão somente um COMUNISTA de um tremendo mau gosto estético, brega e cafona.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s