De RoboCop ao nazismo, o diretor Paul Verhoeven é um demolidor
Um iconoclasta, diz o Dicionário Houaiss, é “ aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra qualquer tradição”. Se quisesse entrar em detalhes sobre o que isso significa na prática, o Houaiss poderia publicar, junto do verbete, a filmografia do holandês Paul Verhoeven: é provável que nunca tenha havido um cineasta tão visceralmente irreverente quanto Verhoeven, e tão feliz em mastigar, de boca aberta, toda a carne grudada nos ossos da nossa hipocrisia (veja-se: RoboCop e o muito incompreendido Showgirls. O Netflix tem os dois). Verhoeven frequentemente é excessivo, é de mau gosto, é loucamente violento, afronta e ofende – mas eu, pelo menos, acho que não de maneira gratuita, e sim porque ele tem a convicção profunda de que nada é sagrado, e tudo deve ser chacoalhado e desmontado até a gente ver o que sobra de verdade (curiosidade: talvez essa convicção seja o resultado bem interessante de ele ser formado não só em matemática e física, como também em teologia; segundo ele, RoboCop é sua versão da história de Jesus). Nos últimos anos, Verhoeven filma muito pouco – mas em setembro deve sair um filme novo dele, Elle, protagonizado pela igualmente implacável Isabelle Huppert. Enquanto isso, dê uma olhada no excelente A Espiã, de 2008, que está disponível no Netflix.
Leia a seguir a resenha que eu escrevi quando o filme foi lançado em 2008.
No ponto de partida
Com A Espiã, Paul Verhoeven retorna à Holanda e à II Guerra – e se reencontra também como cineasta
Incensado, com razão, por RoboCop e O Vingador do Futuro, e ridicularizado, com certa injustiça, por Showgirls e Tropas Estelares, o holandês Paul Verhoeven personifica um dos percursos típicos dos cineastas estrangeiros em Hollywood: chegou coberto de glória, foi-se embora como um fracasso. Seu filme mais recente, porém, é um forte indício de que ele pode estar não numa trajetória descendente, mas pendular – e de novo em ascensão, portanto. A Espiã é um Verhoeven como fazia tempo não se via: vigoroso, voluptuoso e provocativo, mas sem aquele quê de gratuidade e de ironia extrema que o havia tornado indigesto para a plateia, em especial a americana. Como muitos outros artistas em situação semelhante, também, Verhoeven se renovou voltando ao ponto de partida – no caso, Haia, a cidade onde cresceu e, aos 6 anos, presenciou o auge da ocupação nazista na Holanda. É nesse mesmo tempo e lugar que Rachel (a excelente Carice van Houten), ex-cantora de cabaré judia, vive escondida na casa de fazenda de uma família cristã. Rachel é descoberta, paga um policial para ajudá-la a fugir, e quase morre no que era na verdade uma armadilha. Acolhida por um grupo de resistência, reinventa-se como agente dupla. Sob o nome perfeitamente holandês e protestante de Ellis de Vries, e com os cabelos – todos eles – tingidos de loiro, ela se insinua para um alto comandante da força de ocupação alemã (Sebastian Koch, o dramaturgo de A Vida dos Outros). Logo fica claro, porém, que alguém está alertando os nazistas para os planos do grupo. E, como Ellis é judia, é mulher e não se fez de rogada em pular na cama de um SS, ela é naturalmente a primeira e principal suspeita. O moralismo e o preconceito, postula Verhoeven, não escolhem lado.
Passadas três décadas, assim, o diretor retoma o assunto do filme que o fez famoso e comprou sua passagem de ida para os Estados Unidos. Como em O Soldado de Laranja, de 1977, A Espiã não está minimamente interessado em relembrar as agruras vividas pelos holandeses na II Guerra. Quer, ao contrário, mostrar aquilo que eles gostariam de esquecer: que, apesar da reputação de tolerância que cultivam, também colaboraram com o inimigo e foram hipócritas. “De outra forma, ao final da guerra não teriam restado apenas 30.000 dos 140.000 judeus holandeses”, diz o roteirista Gerard Soeteman, com quem Verhoeven escreveu ambos os filmes. Quase todos estes, como Ellis, foram denunciados em troca de dinheiro. E quase todos os que viveram para contar sua história, como ela (a personagem é um apanhado de diversas figuras verídicas), o fizeram graças a uma conjunção de sorte, engenhosidade e pendor para a dissimulação. A certa altura, Ellis se pergunta se tudo isso algum dia vai terminar. Verhoeven, que é um realista, responde que não: na última cena, já novamente sob seu nome verdadeiro de Rachel e morando num kibutz em Israel, a protagonista se recolhe no que parece ser a mais perfeita paz. O diretor, então, afasta um pouco a câmera, para mostrar o arame farpado e as armas que defendem esse seu oásis. Certas coisas mudam, mas não acabam.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 09/01/2008
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2008
A ESPIÃ
(Zwartboek)
Holanda/Alemanha, 2006
Direção: Paul Verhoeven
Com Carice van Houten, Sebastian Koch, Thom Hoffman, Derek de Lint, Waldemar Kobus
Isabela, vale lembrar que estão também no Netflix Tropas Estelares e O Homem Sem Sombra.
CurtirCurtir
É ótimo o alvoroço que causa a cena em que o Sebastian Koch levanta a arma por baixo do lençol.
CurtirCurtir