Saoirse Ronan é um encanto em um filme que finge (só finge) ser água-com-açúcar
Em Enniscorthy, sua cidadezinha provinciana, fofoqueira e ultramoralista na Irlanda, não há nada para Eilis – nem emprego, nem namorado, nem um futuro que não seja inteiramente provinciano e fofoqueiro. Ser jovem em um lugar como esse, no início da década de 50, é uma coisa de desanimar. A irmã de Eilis, então, faz um sacrifício: ela vai ficar na Irlanda, com a mãe que enviuvou há pouco; e Eilis vai se mudar para Nova York, para fazer uma nova vida. Eilis vai de coração partido. Quando o navio deixa o porto e ela, no convés, vê a mãe e a irmã ficando para trás, sente-se que, se pudesse, ela pularia de volta. É um desempenho absolutamente encantador de Saoirse Ronan – que agora está com 23 anos e, desde seu primeiro papel importante, em Desejo e Reparação, de 2007, nunca deixou de se provar a grande atriz que já se anunciava ali. E também Brooklyn é um filme de cheio de encantos: finge ser água-com-açúcar, mas retrata as experiências da imigração e da emancipação com humor e muito discernimento, e no roteiro de Nick Hornby, preserva todas (ou quase todas) as nuances do ótimo romance de Cólm Tóibín em que se baseia. (Só para lembrar, tanto Tóibín como Saoirse e o diretor John Crowley são irlandeses que passam boa parte do tempo nos Estados Unidos, e esse conhecimento em primeira mão transparece no filme.)
Desde o enjoo violento no navio (a atriz Eva Birthistle tem uma participação excelente aí, como a imigrante veterana que ensina Eilis a lidar com os problemas gastrointestinais e com as autoridades na chegada) até a desorientação das primeiras semanas em Nova York, Eilis se sente miseravelmente infeliz o tempo todo: acha que as outras moças da pensão em que ela mora ridicularizam seu ar de boazinha, sente-se um bicho-do-mato porque não sabe conversar com as freguesas da loja de departamentos em que trabalha, suas roupas são caipiras em comparação com a maneira como as outras mulheres se vestem. Jim Broadbent, como o padre que organizou a ida dela para os Estados Unidos, e especialmente Julie Walters, como a dona da pensão, dão um baile, e oferecem um contraponto fundamental para Eilis: não só eles próprios vieram da Irlanda como acolheram incontáveis outras pessoas nessa situação, e sabem que a fossa passa. Não apenas passa, como um dia vai ser esquecida e se tornar incompreensível.
Que eu me lembre (e estou aqui enumerando de cabeça, sem muita pesquisa), só dois outros filmes recentes sobre essa que é a mais emblemática das travessias – a chegada do imigrante em Nova York – têm um ponto de vista feminino: Novo Mundo, com Charlotte Gainsbourg, e Era Uma Vez em Nova York, com Marion Cotillard. Mas os dois tratam das levas de imigração europeia do final do século XIX ou começo do século XX, quando a cidade estava se consolidando em torno das massas de recém-chegados. Brooklyn é uma criatura completamente diferente: chegando a Nova York nos anos 50, Eilis é uma mulher que pode fazer uma vida para si mesma – pode estudar (como faz), pode se vestir como achar melhor (e o faz), pode escolher com quem namorar. O diretor John Crowley tem um ótimo senso para o ritmo desse dia a dia em transformação, e acho especialmente boa a maneira como ele conduz a aproximação entre Eilis e o ítalo-americano Tony (Emory Cohen). É uma beleza, por exemplo, a cena em que Eilis vai jantar com a família de Tony e acaba confessando que tomou aulas para aprender a comer spaghetti sem espalhar o molho pela sala.
A certa altura, Eilis tem de fazer uma visita à Irlanda. E, quando chega de volta em Enniscorthy, a cidade na qual ela não tinha lugar repentinamente se abre para ela. Um outro sujeito entra na jogada – Jim (Domnhall Gleeson), que é tão doce quanto Tony, mas está completamente enraizado ali. Seria um golpe sujo do livro e do filme escolher qual dos dois é melhor para Eilis, se Tony ou se Jim. Bem mais honesto é sugerir que Eilis poderia ser feliz com um ou com outro; a escolha, aqui, não é só entre eles, mas entre a vida que cada um deles representa e o que ela quer para si. Se isso é ou não água-com-açúcar não sei, mas por mim todas as três indicações de Brooklyn ao Oscar – filme, roteiro adaptado e atriz, para Saoirse – estão valendo.
P.S.: Não sei por que raios a distribuidora decidiu “traduzir” o nome do filme para Brooklin, com “i”. Brooklin com “i” é um bairro na zona sul de São Paulo. O de Nova York é Brooklyn com “y” e pronto. Ou então vamos ter que começar a chamar Sydney, na Austrália, de “Sídnei”. Argh.
Trailer
BROOKLYN
Irlanda/Inglaterra/Canadá, 2015
Direção: John Crowley
Com Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domnhall Gleeson, Julie Walters, Jim Broadbent, Fionna Glascott, Eva Birthistle, Brid Brennan, Jessica Paré
Distribuição: Paris Filmes
Saoirse está incrível…
Quem é sua favorita a melhor atriz, Isabela? Senti muita falta de Carey Mulligan entre as indicadas. O que você achou da esnobada dela (e do filme com um todo) em The Sufragettes?
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Isabela, para variar, os seus comentários atiçaram meu interesse de cinéfilo. Já estou me programando para assistir. Obrigado.
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Amei este filme! Cumpre com perfeição ao que se propõe . Não acho água-com-açúcar Pq nem todo filme tem que ter uma dramalhão pra ser relevante e pra que nos identifiquemos. Até Pq a vida da maioria das pessoas não é um dramalhão (thank God). Brooklyn retrata uma história vivida por milhares de pessoas em todas as épocas, nos mais diferentes lugares. A interpretação da Saoirse está maravilhosa, sem nada de afetação e mto convincente. Mereceu mto essa indicação ao Oscar só perde, se é que perde, para a Brie de Room. Falando nisso, não vejo a hora de ler o coment de Isabela sobre Room. Dos que assisti de 2015 foi o mais memorável. Uma obra linda para refletir e se desidratar de tanto chorar.
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