Não é por acaso que, aos poucos, foi virando mania a série da Netflix sobre os confrontos entre vikings e saxões na Inglaterra dos séculos 9 e 10
“Um mundo estranho e não raro melancólico” é como o escritor Bernard Cornwell descreveu aquilo que encontrou, décadas atrás, ao se interessar pela longínqua poesia saxônica – e, sendo Cornwell um grande recriador de mundos passados (sua série Sharpe, sobre as Guerras Napoleônicas, é uma delícia), ele resolveu dedicar uma série de treze livros a esse período violento, inseguro e repleto de encontros com o desconhecido que revolucionou as Ilhas Britânicas nos séculos 9 e 10: o período em que a Inglaterra, antes um punhado de reinos diversos e muitas vezes rivais, afinal terminou por se tornar uma nação. Os livros são viciantes, e The Last Kingdom, a série da Netflix de que eles são adaptados, também pode causar séria dependência. Um desses casamentos felizes entre ficção envolvente e história pesquisada e recriada com qualidade, The Last Kingdom já vai pela quarta temporada acompanhando as aventuras e desventuras de Uthtred de Bebbanburg, um herdeiro saxão traído pelo tio canalha, salvo da morte por dinamarqueses, criado como filho adotivo do rei viking Ragnar e então tornado um grande guerreiro que sofre com sua dupla lealdade – aos vikings com quem ele se identifica e que não paravam de invadir a Inglaterra e ao rei saxão Alfred de Wessex, primeiro a visualizar o sonho de um país costurado a partir dos reinos dispersos.

Nesta quarta temporada, Alfred, o rei inteligente, ardiloso e meio deprimido que David Dawson interpretou de maneira arrebatadora, não está mais em cena. Morreu sem ver seu sonho realizado, e seu filho Edward (Timothy Innes) é quem ocupa o trono agora, com menos brilho do que o pai e com ainda mais problemas que ele: em vez de se unirem, os quatro reinos principais – Wessex, Mercia, Northumbria e East Anglia – estão ainda mais divididos pelas suas hostilidades fronteiriças (o País de Gales era um inimigo feroz) e pela pressão das invasões dos “bárbaros” vikings (os saxões, por serem cristãos, achavam-se menos bárbaros, mas estavam sendo bondosos consigo mesmos). As intrigas palacianas ficam cada vez mais emaranhadas, as crises se sucedem e as batalhas explodem sem parar – a Batalha de Tettenhall, no quarto episódio, é um estrondo e é também de uma tensão terrível, com decisões estratégicas surpreeendentes feitas no momento, no fio da navalha. Quase corre sangue também entre Edward e sua irmã Aethelflaed (Millie Brady), rainha de Mercia, que brilha na batalha e o faz passar por indeciso e indiferente. Há dúvidas se eles se estranharam mesmo, mas é fato que, depois de Tettenhall, Aethelflaed e Edward colaboraram militarmente em várias ocasiões com muito sucesso. Curiosamente, Uhtred, interpretado pelo anglo-alemão Alexander Dreymon, é um personagem fictício. É inspirado em dois Uhtreds famosos, um do século 10 (Uhtred de Derbyshire) e outro do século 11 (Uhtred de Northumbria), mas Cornwell o criou para ser o fio condutor de um história que, de outra forma, poderia resultar dispersa, e porque – isso é genial – ele é descendente do Uhtred de Northumbria; seu pai biológico, aliás, conservou até o sobrenome do antepassado, e chamava-se William Outhred.

Esse talvez seja o aspecto mais bacana de The Last Kingdom: às vezes tudo parece tão fantástico que, para virar Game of Thrones, só faltariam os dragões. Mas é melhor ainda justamente por isso, por faltarem os dragões; à parte um ou outro detalhe que se desvia da crônica histórica em prol da trama e da excitação, é mais ou menos assim que tudo se passou mesmo. The Last Kigdom começou no History Channel com uma produção correta porém muito modesta. Desde que passou para a Netflix, ganhou mais orçamento e ficou mais opulenta, mas não perdeu a atenção à fidelidade e à minúcia – os castelos acanhados, os vilarejos enlameados, as roupas rústicas e, por outro lado, o monte de trabalho que ia no figurino, barba e cabelo dos guerreiros vikings para que eles parecessem assustadores (com pleno sucesso) são detalhes autênticos. Há um ou outro personagem cansativo – não aguento mais a cara azeda da viking vingativa Brida (Emily Cox) –, mas na maioria eles são um atrativo à parte, do próprio Uhtred ao frade Beocca (o maravilhoso Ian Hart), do rei Alfred a Aldhelm (James Northcote), o fiel escudeiro da rainha Aethelflaed (os nomes saxônicos são uma maravilha, aliás). É uma história eletrizante, dramática, violenta e às vezes poética do nascimento de uma nação por meio de atos de vontade, de assimilação e de incorporação, e de guerra e negociação. Para minha felicidade ser completa, só faltaria agora alguém transformar em série a outra grande guerra dos tronos inglesa – a Guerra das Rosas de 1455-1485, que está prontinha para ser adaptada em uma série de quatro livros também eles muito bem pesquisados de Conn Iggulden.