A canadense Sarah Gadon mostra fibra de aço e uma riqueza atordoante na ótima minissérie da Netflix
Como estamos entrando em dezembro e não há mais tantas séries nem filmes para estrear aqui até a virada do ano, vou fazer um veredito antecipado: o de que em 2017 você não vai ver um desempenho feminino mais hábil, original e atordoante que o de Sarah Gadon na minissérie Alias Grace, que entrou há algumas semanas na Netflix. A série toda é um affair canadense: baseia-se num romance que a escritora canadense Margaret Atwood publicou em 1996, foi criada pela atriz e cineasta canadense Sarah Polley, é dirigida pela canadense Mary Harron (de Psicopata Americano) e até tem uma ponta do mais ilustre diretor canadense, o loucão David Cronenberg (aqui no papel de um reverendo). E, finalmente, trata de um caso célebre da crônica canadense: de como, em 1843, a empregada doméstica Grace Marks, então com 16 anos de idade, virou figura notória no Canadá – então ainda uma colônia britânica – ao ser presa pelo assassinato de seu patrão, Thomas Kinnear, e possivelmente também da governanta dele (que estava grávida de Kinnear). Se mulheres homicidas são, ainda hoje, muitas vezes mais raras do que homens homicidas, é natural que, no provinciano Canadá da era vitoriana, o caso tenha provocado furor – especialmente porque os assassinatos vinham cercados de sugestões sexuais e porque Grace era muito jovem e muito bonita, com um ar inocente que ia contra as suposições acerca da aparência e do caráter da autora de um crime violento. Durante o julgamento, Grace e o outro empregado da propriedade, James McDermott – um imigrante irlandês, como ela – deram inúmeras versões contraditórias sobre o que teria acontecido. James a teria obrigado a participar dos crimes, dizia Grace. Ela o havia seduzido a cometer os assassinatos, dizia James. Ele foi enforcado; ela foi condenada à pena perpétua e acabou passando 29 anos na prisão.
O livro e também a série são um estrondo. Eles introduzem um elemento ficcional para investigar a personagem real: um médico da então muito nova ciência das doenças da mente passa vários dias entrevistando Grace, no que é efetivamente uma longa sessão de psicanálise. O objetivo é que o médico, Simon Jordan (o inglês Edward Holcroft, único com passaporte estrangeiro da turma e também ele ótimo ator), confirme a inocência de Grace para que um reverendo e seus seguidores possam fazer uma petição mais sólida pela libertação dela. De cara, Grace se prova um páreo e tanto para o seu analista. Tendo nascido miserável, passado por privações e abusos indescritíveis e então se visto no meio do clamor gerado pelos assassinatos e em seguida no horror de um manicômio e da prisão, Grace sobreviveu, até ali, por ser uma observadora muito arguta das expectativas que os outros têm em relação a ela, e por saber projetar uma persona que atenda ou desafie essas expectativas, conforme o caso. Serena, composta, recatada, sempre com uma touca engomada cobrindo sua cabeça (no livro há uma passagem memorável, em que o médico imagina que cheiro teriam os cabelos dela), Grace espera Simon Jordan todas as manhãs na sala da casa do diretor da prisão, onde ela trabalha como arrumadeira durante o dia. Enquanto borda uma colcha (à maneira da Penélope da Odisseia), Grace conta sua versão dos fatos para o médico, provocando-o com sua deferência e também com sua ardileza: como ele pode saber se o que ela diz é verdade? Pois não pode, avisa a ele a própria Grace. Nem Simon nem o espectador – nem muito menos a história – poderão ter certeza.
Essa ambiguidade é a única coisa de si de que Grace é dona de fato. É a sua arma de sedução, também, no sentido literal da palavra e no seu sentido mais amplo, já que seu recato é ele próprio uma promessa de coisas que estão sendo negadas a quem as deseja. E é assombrosa a quantidade de matizes diferentes que Sarah Gadon consegue dar às infinitas encarnações de Grace que vão surgindo à medida que ela narra sua história. Loira bem clara, de físico e rosto muito delicados e olhos azuis grandes, Sarah Gadon em geral é aproveitada em papeis em que seu aspecto reflete uma faceta de inocência da personagem. Desde bons papeis, como no ótimo Belle, até papeis medianos, como a da mulher do conde Vlad em Drácula – A História Nunca Contada. Admito que não conheço toda a carreira dela (ela fez várias séries de TV que nunca vi), mas, do que conheço, nunca antes eu tinha visto alguém usar a aparência de Sarah para confundir e provocar. Esse contraste pouco adiantaria, claro, se Sarah não fosse também uma atriz com fibra de aço sob aquela superfície límpida, e de um apuro técnico impressionante. São tão tensos e elétricos os encontros entre ela e Edward Holcroft que a conquista da diretora Mary Harron, aqui, é saber como interferir o mínimo possível e emoldurar ao máximo todas as coisas que estão se passando entre os dois. Até ver Alias Grace eu achava Sarah Gadon uma atriz competente. Agora, ela me parece verdadeiramente épica.