Eu queria ter um centavo para cada vez que já vi essa história antes
Sujeito que já foi grande (ou diz ter sido) e agora vive em eterna maré de azar aceita uma proposta que parece uma barbada mas, está na cara, é a maior fria. No meio de mais azar e mais adversidades, porém, ele vai topar de forma inesperada com um talento genuíno, que o faz lembrar do tempo em que ele ainda tinha paixão pelo que fazia. E, assim, revela esse talento ao mundo, além de redimir a si próprio e aos incautos que o acompanharam em sua aventura. O contexto pode ser esporte, música, concurso de soletrar, cozinha de restaurante. Não importa: o cinema (e não só o americano) gosta tanto dessa história que a conta uma meia dúzia de vezes por ano, pelo menos. (Há uma variante dela: “Sujeito que é uma sumidade no que faz e tem padrões de qualidade impossíveis de satisfazer descobre um talento espontâneo…”). Não tenho nenhuma objeção a histórias que se repetem; quase sempre, a maneira como uma história é contada é muito mais importante que a história em si. E é essa portanto minha queixa com filmes como A 100 Passos de um Sonho, com Helen Mirren, Arremesso de Ouro, com Jon Hamm, e Rock em Cabul, dirigido por Barry Levinson e protagonizado por Bill Murray: é que eles são contados sempre exatamente da mesma maneira, com o mesmo sentimentalismo e as mesmas supostas reviravoltas; apenas escolhem um cenário exótico e escalam um craque no papel central a fim de poder transferir para ele a responsabilidade de dar ao filme algum frescor e um sabor específico.
Para crédito de Helen Mirren, Jon Hamm e tantos outros, eles se desincumbem dessa responsabilidade – da mesma forma que Bill Murray aqui, no papel de um empresário musical que alardeia ter sido o descobridor de Madonna e outros do calibre dela. No momento, porém, Richie Lanz opera a partir de um quarto de motel no subúrbio de Van Nuys, em Los Angeles, esfolando gente sem nenhum talento mas cheia de esperança. Como, por exemplo, sua secretária Ronnie (Zooey Deschanel), que ele enrola com promessas de uma grande carreira enquanto a faz cantar covers de sucessos em bares de fim de linha. Num desses bares, um sujeito diz a ele que está chovendo dinheiro em cima de empresários que levem artistas para entreter as tropas no Afeganistão. E lá se vai Richie para Cabul, arrastando consigo a apavorada Ronnie – que logo lhe dá um chapéu e o deixa sem dinheiro nem passaporte no meio da zona de guerra.
Entre as peripécias de Richie para arrumar dinheiro, que envolvem a ajuda do indefectível motorista de táxi local (Arian Moayed) e de uma prostituta de coração mole (Kate Hudson) – além de pontas de Bruce Willis e Danny McBride –, inclui-se uma intermediação de venda de armamentos e munição para um vilarejo rebelde no interior. Lá, mal Richie escapa de perder a cabeça, ele já arruma outra fria: andando pelo deserto à noite, ouve uma voz feminina sensacional. Trata-se de Salima (Leem Lubany), filha do chefe tribal, que se esconde dentro de uma caverna para cantar músicas de Cat Stevens (que Salima considera zona neutra, já que o inglês Cat virou muçulmano e hoje se chama Yusuf Islam). Richie convence Salima que ela deve desafiar a sharia, a lei islâmica, e ir cantar no Afghan Star, uma versão afegã do American Idol. Confusão, revolta e ameaças se seguem, até chegar-se ao desfecho previsível.
Bill Murray navega esse roteiro preguiçoso com a graciosidade que adquiriu depois da meia-idade: sempre colocando-se um passo para fora de seu personagem, ele olha as fraquezas e eventuais qualidades deste com resignação e um tantinho de ruminação filosófica, como se elas – as fraquezas e qualidades – fossem as suas próprias, mas ainda lhe causassem alguma surpresa. A ideia do filme, contudo, de que é simples assim exportar sentimentos e pontos de vista, flerta com o insulto. Rock em Cabul é muito ligeiramente inspirado no caso de Setara Hussainzada, uma jovem que arriscou a vida – literalmente – indo cantar no Afghan Star. Onde, ao contrário da recatada Salima, ela dançou e arrancou o véu ao vivo. Li que Setara hoje em dia vive armada e cercada de guarda-costas. Porque ser mulher no Afeganistão, claro, é mesmo um prato cheio para a comédia.
P.S.: Não existem casbahs no Afeganistão, como a própria filha de Richie Lanz informa a ele no começo do filme. A ideia dos produtores, evidentemente, era fazer menção à Rock the Casbah do The Clash, que faz referência à proibição do rock no Irã (onde também não há casbahs) depois da revolução muçulmana de 1979. O Clash não cedeu os direitos da música, e suponho ser por isso que o Casbah original virou Kasbah no título do filme.
Trailer
ROCK EM CABUL
(Rock the Kasbah)
Estados Unidos, 2015
Direção: Barry Levinson
Com Bill Murray, Kate Hudson, Zooey Deschanel, Bruce Willis, Leem Lubany, Arian Moayed, Fahim Fazli, Danny McBride, Scott Caan
Distribuição: Sony
É por atitudes assim, de nunca se render nem se jamais se vender, que eu me orgulho desde sempre em ser um soldado do Clash.
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concurso de soletrar parece ser o contexto mais adequado a um dos clichês mais medíocres da indústria do falso inconformismo (com a fórmula mais conformada em padrões narrativos ou de enredo.)
Parabéns á Melhor Banda de Todos os Tempos por não permitir que sua última obra-prima fosse mergulhada nesse poço de mediocridade. Isso é o tipo de coisa contra qual o Clash sempre lutou.
General Joe Strummer, suas ordens foram cumpridas á risca — até a vitória final contra esse sistema viciado.
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