Um coreano e um clássico pop brincam com a ideia de fazer de novo para fazer melhor
Fazendo um pouco de turismo pela cidade de Suwon, onde no dia seguinte apresentará um filme, um diretor de cinema puxa conversa com uma jovem aspirante a artista plástica. Eles conversam um pouco na porta do templo que estão visitando; seguem para um café; dali vão para o ateliê dela, onde ele diz algumas coisas simpáticas sobre os quadros dela; jantam juntos, ele bebe horrores e fica falando como ela é linda (e é mesmo); esticam o programa bebendo (mais ainda) com alguns amigos dela. E acordam, no dia seguinte, cada um em sua respectiva cama, de ressaca e chateados por a atração mútua não ter levado a nada. O que fazer? Recomeçar o dia – e o filme, com créditos de apresentação e tudo –, para ver se dessa vez, com algumas pequenas correções de rota, o final será diferente. É encantadora a ideia que move o cineasta sul-coreano Sang-soo Hong em Certo Agora, Errado Antes, que está em cartaz nos cinemas, a de dar um sentido literal à segunda chance. Mas o filme não me pegou muito: os dois personagens são ruins de conversa que só vendo. E, embora essa pegada do banal, das coisas como elas são, seja central à história, o fato é que foi ficando aborrecido demais acompanhar tanto papo de aranha.
Já em Feitiço do Tempo, uma pequena obra-prima dirigida e co-roteirizada por Harold Ramis em 1993, não há um único diálogo que seja menos do que delicioso: Bill Murray, Andie MacDowell e o ótimo elenco de apoio fazem música com as infinitas variações em torno dos mesmos temas – Murray é um homem do tempo ranzinza que se descobre preso ad aeternum em um certo dia 2 de fevereiro, fadado a repeti-lo até… Quem sabe? Até aprender a vivê-lo direito, talvez. Feitiço do Tempo faz parte da minha galeria de filmes americanos indispensáveis. E, embora o DVD esteja fora de catálogo há anos, ele está lá no Netflix, escondido dentro de algumas daquelas categorias exóticas. Ao fim e ao cabo, é tão poético quanto Certo Agora, Errado Antes – mas mais divertido.
Leia a seguir a resenha que fiz para a edição de março de 1994 da revista SET, quando Feitiço do Tempo foi lançado em VHS (!!!!!!):
Escravo do Relógio
Desde a primeira cena de Feitiço do Tempo, fica claro que o mal-humorado homem do tempo Phil Connors (Bill Murray) tem problemas com a humanidade em geral e com as pessoas em particular – e que esses problemas são recíprocos. Imagine-se então os sentimentos de que Phil é vítima ao ter que cobrir, pelo quarto ano consecutivo, as absurdas festividades do Dia da Marmota no vilarejo de Punxsutawney, Pensilvânia. A função da marmota – também chamada Phil, e não por coincidência – é fazer uma aparição no dia 2 de fevereiro de cada ano a fim de “prever” a duração do inverno. Caso o animal veja a sua sombra, podem-se esperar mais seis semanas de frio. Caso contrário, as expectativas são de uma primavera precoce.
No dia 2 de fevereiro em questão, o que a marmota prevê para o cínico e cético Phil Connors é um inverno interminável. Depois de se indispor com todos os seres humanos que cruzam seu caminho em Punxsutawney – inclusive com sua bela e doce produtora, Rita (Andie MacDowell) – e de uma malsucedida tentativa de deixar a cidade o mais rápido possível, Phil se descobre preso numa dobra temporal: está condenado a reviver a cada dia o mesmo 2 de fevereiro, com todos os seus insucessos. O charme maior do filme está no fato de que, para boa parte da humanidade, cada dia é realmente muito parecido com o anterior ou o seguinte. Cada um dribla como pode esse “loop”, acrescentando ou subtraindo experiências à medida que os dias avançam. A missão de Phil é, portanto, aprender a conviver com o dia 2 de fevereiro, tentando torná-lo o mais perfeito, ou o mais aceitável, que puder.
Após o desespero inicial, Phil vai adicionando novas variáveis a seu dia fatídico. Não importa se a noite termina na cadeia, na cama de alguém ou no seu próprio velório: a manhã “seguinte” é sempre a mesma. Ele pode usar as informações que recolhe sobre os novos vizinhos para os fins mais sórdidos, pois ninguém se lembrará mesmo. E pode se agredir das formas mais violentas, já que acorda sem ressacas ou hematomas. A inteligência do diretor Harold Ramis está em em não se limitar a descrever como Phil pode explorar suas fantasias. Está em mostrar como elas rapidamente revertem à sua condição inicial de pesadelo, já que Phil jamais progride, por exemplo, em suas tentativas de conquistar Rita. Assim, para quebrar seu feitiço, ele deve mudar a maneira como vê as coisas – já que não pode mudar a maneira como elas são.
Quem dá forma a essa bela ideia e ao bem-amarrado roteiro é Bill Murray, um dos remanescentes da geração notabilizada pelo Saturday Night Live. Murray pode não ser um ator, ou um comediante, para todos os gostos, mas expõe suas melhores qualidades em Feitiço do Tempo. Enquanto Phil passa da incredulidade ao desespero, à resignação, volta ao fundo do poço e tenta afinal fazer de seu eterno 2 de fevereiro um dia inesquecível, Murray resiste à tentação de ser grandiloquente, escolhendo sempre a interepretação mais sutil. Evita, assim, que um filme em que todas as cenas se repetem acabe sendo ele próprio repetitivo.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista SET em Março de 1994
Trailer
CERTO AGORA, ERRADO ANTES
(Right Now, Wrong Then)
Coreia do Sul, 2015
Direção: Sang-soo Hong
Com Jae-yeong Jeong, Min-hee Kim
Distribuição: Zeta FilmesO FEITIÇO DO TEMPO
(Groundhog Day)
Estados Unidos, 1993
Direção: Harold Ramis
Com Bill Murray, Andie MacDowell, Chris Elliott, Stephen Tobolowsky, Brian Doyle-Murray, Angela Paton, Harold Ramis, Rick Overton, Robin Duke, Marita Geraghty
Feitiço do Tempo é meu filme favorito desde 1993 – eu o assisti pela 1a vez no cinema, assim que foi lançado nos EUA. Depois, de volta ao Brasil, dei aulas de inglês por quase 10 anos e sempre usava diálogos do filme nas minhas aulas (o filme todo na verdade, dividido em várias atividades). O resultado é que já assisti ao filme mais de 100 vezes e continua sendo meu favorito – os diálogos são deliciosos e não consigo enjoar de revê-los! O interessante é que, depois de tê-lo assistido tantas vezes, sua resenha fala de aspectos do filme que eu ainda não tinha me dado conta – a analogia do dia revivido infinitas vezes por Phil Connors com o dia a dia da maioria das pessoas — nunca tinha pensado nisso! Uma curiosidade: quando passava esse filme para os alunos adultos, eles invariavelmente adoravam. Já os adolescentes dificilmente entendiam o “feitiço” e ficavam querendo alguma explicação “concreta” ou que fizesse sentido (um pirilim-pim-pim ou abracadabra), porque muitos não compreendiam a moral por trás da quebra do encanto!
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Ainda bem que a SET faliu. Assim Boscovsky ganhou seu lugar de direito na VEJA.
A SET era toda errada. Era aquela revista bizarra com diagramação desperdiçando espaços em branco nas laterais das páginas, que a gente precisava usar uma lente de aumento pra conseguir enxergar as fotos minúsculas e letras microscópicas.
Brasileiro não sabe nem editar revista.
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Há 22 anos seu texto já era muito bom, Isabela. Você era um dos motivos para eu ler SET, uma revista que, mesmo com seus defeitos, faz falta hoje.
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