Mesmo quando seus filmes eram pequenos, Christopher Nolan já tinha grandes ideias
Velhos tempos aqueles em que Guy Pearce ainda era o cara de Priscilla, a Rainha do Deserto e Chris Nolan era um jovem cineasta independente que não conseguia levantar nem 5 milhões de dólares para completar seu orçamento: os estúdios aos quais ele ofereceu Amnésia (que está dando sopa lá no Netflix) acharam a história tão extravagante que até essa quantia, minúscula para os padrões americanos de produção, foi considerada um risco alto demais. É aquele mesmo caso do executivo de gravadora que achou que os Beatles não tinham futuro: santo erro de cálculo, Batman! Os produtores que fecharam a porta na cara de Nolan não só perderam a chance de ganhar dinheiro com o próprio Amnésia como, quando se olham no espelho, têm de lembrar que não foram capazes de perceber que ali estava um talento especial, que dentro de poucos anos seria conhecido como o diretor de Interestelar, A Origem e da trilogia Cavaleiro das Trevas. E foi exatamente em cima de Amnésia que Nolan construiu a reputação que lhe traria essas oportunidades.
Mas dê-se um desconto à miopia deles: contado de trás para a frente, em ciclos que sempre se sobrepõem um pouquinho ao que já foi visto antes, Amnésia é, no papel, uma proposição complicada. Mas o roteiro e a direção cristalinos de Nolan (que se baseou num conto escrito por seu irmão Joseph) e a atuação ultraprecisa de Pearce – tão nítida que parece cortada a diamante – tornam o filme fluente, prazeroso e invariavelmente surpreendente. Curiosidade: os dois outros papeis mais importantes são desempenhados por Carrie-Anne Moss e Joe Pantoliano, que no ano anterior haviam sido colegas de cena em Matrix.
Leia a seguir a resenha que publiquei quando o filme foi lançado em circuito no Brasil:
Ordem inversa
Contado de trás para a frente, o suspense Amnésia injeta ânimo novo no filme noir
Logo na abertura de Amnésia já dá para sentir que há algo estranho acontecendo. Um homem segura uma polaróide na mão, à espera de que a imagem apareça. Mas, ao invés de ficar nítida, a foto escurece cada vez mais. Demora até o espectador perceber que a cena está correndo de trás para a frente. É bom, no entanto, se acostumar: nesse excelente suspense, tudo anda ao contrário. A idéia não é torturar a platéia, e sim colocá-la em situação idêntica à do protagonista – um homem que, devido a um acidente, perdeu a capacidade de reter suas lembranças. A cada minuto, Leonard Shelby (o australiano Guy Pearce) esquece o que se passou no instante anterior. Já seria suficientemente complicado se Leonard tivesse alguém em quem confiar. Mas sua angústia é agravada pela solidão e pela tarefa insana a que ele se propôs: vingar-se de quem matou sua mulher na mesma ocasião em que ele contraiu o estranho distúrbio.
Na tentativa de reconstruir tudo o que se passou desde esse momento, Leonard tatua mensagens no próprio corpo, endereça bilhetes a si mesmo, tira fotos das pessoas que o cercam e nelas faz anotações – do tipo “confie nela”, ou “não acredite em nada do que ele diz”. Mais engenhosa ainda é a abordagem do diretor, o inglês Chris Nolan. Depois de mostrar cada cena, ele volta a um ponto ligeiramente anterior para revelar que nada do que se acabou de ver é exatamente o que Leonard (ou a platéia) imagina. É um festival de pistas falsas e reviravoltas, que exige o máximo de atenção. Mas é tão bom que já se converteu no sucesso-surpresa deste ano – para desgraça de todos os grandes estúdios, que recusaram os modestos 4,5 milhões de dólares requisitados pelo diretor independente para tocar o projeto. Perderam a chance de abiscoitar uma produção que, além de renovar um gênero tão esgotado quanto o filme noir, é uma peça impecável de relojoaria. De quebra, Amnésia convida a algo raro no cinema de hoje: reflexão. No caso, sobre como as pessoas são o que lembram – e sobre como lembram apenas aquilo que escolhem lembrar.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 29/08/2001
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2001
AMNÉSIA
(Memento)
Estados Unidos, 2000
Direção: Christopher Nolan
Com Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe Pantoliano, Mark Boone Junior, Stephen Tobolowsky, Jorja Fox, Callum Keith Rennie
“Amnésia” é uma inequívoca prova de que em pleno século 21 é possível criar uma obra absolutamente original, inovadora, surpreendente, revolucionária em termos narrativos, reinventando a forma de se contar uma estória; uma rara exceção de originalidade contra o cinema-zumbi a que se reduziu Hollywood nessa era de adaptações (dos quadrinhos, da literatura, dos games, dos desenhos animados, das séries de TV e até de refilmagens de clássicos irrefilmáveis) com orçamentos de até centenas de milhões de dólares. No ano 2000, com uma bagatela, Christopher Nolan fez o milênio começar melhor do que tudo o que veio antes em termos de transgressão narrativa. Bravo!
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Sugestão de análise de um grande filme para você, mestra: uma obra-prima perfeita sobre uma arte antiga enquanto metáfora de toda a indústria do espetáculo em geral e do cinema em particular.
O GRANDE TRUQUE
de Christopher Nolan
escrito por Christopher Priest
adaptado do livro deste em roteiro de Christopher Nolan e Jonathan Nolan
com David Bowie, Hugh Jackman, Christian Bale
Um dos momentos mais brilhantes da História do Cinema: na última cena, quando os dois mágicos rivais revelam um ao outro o segredo chocante de seu grande truque, o discurso do personagem de Hugh Jackman em suas últimas palavras enquanto sangra até morrer, é uma Verdade absoluta e comovente sobre “Por que nós fazemos isso: pelo brilho no olhar do público!”
E explica isso com uma eloquência e sinceridade inegáveis, mesmo sabendo do crime estarrecedor que ele cometeu para criar a mágica perfeita a partir da ciência de Nikola Tesla (David Bowie no seu último papel, interpretando magnificamente o Homem Mais Inteligente da História: o físico que sozinho inventou o mundo moderno na terceira Revolução Industrial, dominando a energia elétrica de fora definitiva).
O mais assombroso é descobrirmos como a Ciência gerou um fato sobrenatural a um nível obsceno. “Destrua esta máquina” diz Tesla ao mágico. “ela só lhe trará desgraça.” O mistério é concentrado até o final arrepiante.
Eis aí uma matéria-prima para você desenvolver um grande artigo, ou ensaio, ou no mínimo um belo vídeo. Contamos com seu talento e inspiração.
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