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O Conto dos Contos

Um realista no território da fábula

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Na primeira das histórias de O Conto dos Contos, o rei (John C. Reilly) morre feliz no combate com uma gigantesca salamandra marinha: pelo menos derrotou o monstro, e agora o coração deste, servido à sua rainha no jantar, fará com que ela gere o filho que tanto deseja. Dito e feito; mal terminou de enfiar os dentes no coração sangrento e a rainha (Salma Hayek) sente a barriga crescer. No dia seguinte, acompanha o funeral do marido já com o bebê nos braços. Mas sua satisfação nunca será completa: a criada que preparou as entranhas engravidou também, ao aspirar os vapores do cozimento, e gerou um filho plebeu idêntico ao príncipe real. Pálidos como a salamandra que lhes serviu de pai, os meninos (Christian e Jonah Lees) se adoram – e separá-los será a obsessão da rainha. Também as outras duas histórias que se entrelaçam a essa no filme do diretor italiano Matteo Garrone tratam de gratificações fugidias. Um segundo rei (Vincent Cassel), este dissoluto e libidinoso, se apaixona por uma mulher de voz encantadora. Ele crê se tratar de uma jovem formosa; na verdade, a voz pertence a uma velha feia e enrugada (Hayley Carmichael) que, junto com sua irmã igualmente anciã (Shirley Henderson), tentará enganar o rei. Finalmente, o terceiro rei (Toby Jones), viúvo e comedido, dedicado à sua jovem filha (Bebe Cave), perde o senso de realidade ao cair de amores por uma pulga, que ele vai alimentar até ela atingir dimensões espantosas – e, pela pulga, entregará sua filha em casamento a um ogro repelente.

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Em todas as três histórias, esse impulso do desejo que tem de ser atendido em nome da vaidade, da ambição ou do orgulho vai levar os personagens por caminhos estranhos, cujo destino final quase sempre é a ruína – a deles e a dos incautos apanhados em seu egoísmo. E isso é o que O Conto dos Contos tem em comum com os dois filmes anteriores de Matteo Garrone, o brutal Gomorra, sobre a máfia napolitana, e o mordaz Reality – A Grande Ilusão, que trata da obsessão pela celebridade: a devastação que o desdém e o descaso cavam à sua volta. O Conto dos Contos, porém, troca o registro realista desses dois trabalhos pelo fantasioso: da ambientação medieval à lógica tortuosa de conto-de-fadas, este novo filme se relaciona muito mais com o Gaviões e Passarinhos (1966) e o Contos de Canterbury (1972) de Pier Paolo Pasolini que com qualquer produção italiana contemporânea (à exceção, resguardadas as diferenças, do A Grande Beleza de Paolo Sorrentino, em que a atmosfera irreal frequentemente acentua as aventuras mundanas do protagonista).

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Para quem vai ver o filme pensando em Gomorra, portanto, O Conto pode ser um choque. Para quem está avisado da guinada ou tem familiaridade com essa vertente fabulesca do cinema italiano (na qual se incluem desde o ocasional Pasolini até comédias escrachadas como O Incrível Exército Brancaleone, de Mario Monicelli), ele pode ser uma experiência altamente compensadora, ainda que irregular. Adaptando as fábulas compiladas no século XVII pelo poeta medieval Giambattista Basile em seu Pentamerão, Garrone ao mesmo tempo respeita as notas morais e surreais do material original e torna seus temas relevantes para a plateia de hoje. O desconforto que O Conto dos Contos às vezes provoca vem em grande parte, na verdade, de seu elenco, que não se casa bem com o tratamento escolhido por Garrone. Este é o tipo de material em que rostos menos conhecidos, e mais autenticamente comuns e italianos – como os que Pasolini costumava escolher –, ajudariam muito o espectador na mergulhar no mundo de fábula criado pelo diretor.


Trailer


O CONTO DOS CONTOS
(Il Racconto dei Racconti)
Itália/França/Inglaterra, 2015
Direção: Matteo Garrone
Com Salma Hayek, Toby Jones, Vincent Cassel, Hayley Carmichael, Bebe Cave, John C. Reilly, Christian Lees, Jonah Lees, Shirley Henderson, Stacy Martin, Giuseppe Carnemolla, Guillaume Delaunay
Distribuição: Mares Filmes

2 comentários em “O Conto dos Contos”

  1. Em que pese o fato do óbvio absurdo e ridículo da situação, eu admito que os roteiristas devem mesmo ter algum senso de humor. A questão é saber se toda a plateia vai entender que esse filme é uma piada.

    Bem, pelo menos a direção de arte é mesmo magnífica. Parece mesmo um sonho.

    Ainda criança, eu ficava abismado com o baixíssimo nível mental de todos os contos de fadas medievais, e mais ainda, de todas as pessoas que ainda hoje compram, lêem e repetem essa estupidez absurda de geração a geração, alimentando a indústria da retardadice.

    Perguntei á minha mãe:

    “Todo mundo na Idade Média era débil-mental?”

    Ela respondeu:

    “Taí uma boa pergunta. Acho que sim. Bom, é melhor eu parar de comprar essas besteiras de papel couchê e capa dura com floreios dourados. É caro demais e não vale nada. Vá ler suas revistas em quadrinhos, que sai mais barato. Pelo menos nesse papel jornal a gente já sabe que isso não é mesmo pra ser levado sério. Tanto um como outro, não tem mesmo nenhuma lição de moral.”

    Se é pra curtir um troço descerebrado de monstros, eu preferia ver o Hulk rosnando enquanto esmagava uns tanques de guerra. Não perco meu tempo com inúteis herdeiros do trono. Afinal, vivemos numa república, como os EUA. Pelo menos o dr. Banner era um humilde trabalhador, fabricando bombas atômicas pra derreter os malvados soviéticos que oprimiam o bom povo russo.

    Mas como bom filósofo, eu busquei as respostas sozinho até chegar á idade da Razão. Então a moral da estória é essa: o Dinheiro Move o Mundo. E os pobres otários são movidos até as caixas registradoras e lá depositam sua graninha suada que vai parar no bolso dos espertalhões.

    Hoje, 40 anos mais tarde, eu lanço essa pergunta crucial á titia Isabela:

    “É somente o poder do dinheiro que move a indústria da imbecilidade + a força do marketing avassalador em toda a grande mídia = cérebros empastelados nas bilheterias? Ou é também um problema congênito de MEDO DO MUNDO REAL e fuga da realidade que leva tantos expectadores a abicar do próprio raciocínio, lógica, razão, e mesmo auto-respeito e dignidade pela própria inteligência?”

    Enfim, são tantas questões filosóficas despertadas por contos assim, que talvez jamais o intelecto humano produza uma resposta satisfatória.

    Ou, como dizia aquela piada do Casseta & Planeta sobre a ruindade dos roteiros e furos no enredo da série Lost: “Ah, sei lá, entende? Quem vai saber por que aquele machão lá no começo da série de repente virou bicha? São tantos mistérios…”

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