Jeff Bridges em Coração Louco, Ricardo Darín em Um Conto Chinês, Kristin Scott Thomas em Há Tanto Tempo que Te Amo: escolha quem vai deslumbrar você neste domingo à noite
Estou há tempo querendo inaugurar esta seção regular dentro do blog, sobre filmes que existem em função do desempenho de seu ator central. Então, para lançá-la com as devidas honras, excepcionalmente indico três filmes de uma só vez – todos disponíveis no Netflix, para facilitar a vida.
Mas antes é preciso explicar melhor o que quero dizer com essa ideia, de que um ator às vezes é o filme. Ora, todo filme depende do trabalho apropriado de seus atores. Frequentemente, o elenco eleva um filme além do que ele é – ou, ao contrário, torna-o menor do que ele poderia ser. E vejamos a coisa por outro lado: também não existe bom filme sem bom roteiro e boa direção; por mais que os atores brilhem, eles precisaram desse respaldo sólido para que você pudesse vê-los brilhar.
O que estou isolando, nesta nova seção, são os filmes em que todo mundo (a começar pelo diretor) dá um passo atrás, abre mão do seu ego e age com a máxima discrição para que nada ofusque a intensidade do desempenho central – filmes em que a jornada do personagem é a essência, e em que o ator expressa essa jornada de maneira tão plena que tudo mais se torna secundário. Por isso escolhi começar com estes três filmes, que ilustram à perfeição essa ideia: o independente americano Coração Louco, pelo qual em 2010 Jeff Bridges finalmente recolheu seu primeiro Oscar (no ano seguinte, ele concorreria de novo, por seu trabalho igualmente estupendo em Bravura Indômita); o francês Há Tanto Tempo que Te Amo, em que Kristin Scott Thomas usa de suas consideráveis inteligência e deliberação para compor um personagem que choca e repugna todos à sua volta (menos sua irmã, em uma lindíssima interpretação de Elsa Zylberstein); e o argentino Um Conto Chinês, que passa todos os seus enxutos 93 minutos examinando, fascinado, um espinhoso Ricardo Darín.
Leia a seguir as resenhas que publiquei quando cada um dos três filmes foi lançado nos cinemas.
Jeff Bridges

Justiça seja feita
Jeff Bridges, o mais autêntico ator americano, concorre pela quinta vez ao Oscar com Coração Louco. Mas agora, finalmente, é o favorito
Existem atores aos quais é um prazer assistir pela perícia e inteligência formidáveis com que eles entram em um personagem – como Daniel Day-Lewis ou Tommy Lee Jones. E existem atores aos quais é um prazer assistir porque é impossível distinguir em seu desempenho qualquer sinal de técnica, trabalho ou esforço. A rigor, aliás, nem se parece estar diante de um desempenho: durante duas horas, eles são aquela pessoa. Nessa categoria, não há exemplo melhor que Jeff Bridges, que Pauline Kael (1919-2001), a decana da crítica americana, proclamou como o mais natural e autêntico ator da história do cinema. Pauline adorava emitir julgamentos definitivos, mas continuava a emiti-los porque em geral acertava em cheio. De Bridges, ela disse isso em 1973, apenas dois anos depois de ele ter se lançado com A Última Sessão de Cinema. Nesses quase quarenta anos, o ator não fez outra coisa que não dar-lhe razão – poucas vezes mais do que em Coração Louco, que rendeu a Bridges sua quinta indicação ao Oscar. Pela primeira vez, porém, ele tem chances indiscutíveis de vitória.
No filme do diretor e roteirista Scott Cooper, ele é Bad Blake, um cantor e compositor de música country que outrora foi uma lenda – no presente, muito desgastada pelas quantidades prodigiosas de álcool que consome, pelos muitos inimigos que fez (em alguns casos, o antagonismo está somente em sua cabeça) e pelo temperamento espetacularmente contendedor. Blake percorre longas distâncias no Sudoeste americano, de cidade em cidade, para se apresentar em boliches, bares e outros palcos melancólicos. Não é, contudo, uma figura patética; é um homem que abraçou a própria decadência e fez dela uma marca de honra e de insubmissão. Não surpreende, assim, que uma mulher jovem e direta como a repórter Jean (Maggie Gyllenhaal) se sinta atraída por ele. E é perfeitamente verossímil também que, por causa dela, Blake procure se reerguer e, ao mesmo tempo, sendo quem é, sabotar a tentativa: esse é um filme pequeno e convencional, mas que nunca deixa de soar verdadeiro.
Essa legitimidade emana de Bridges, cujo talento particular, como Pauline assinalara, é construir seus personagens de dentro para fora. Blake vem marcado por tantos particulares e lembranças, tantos gestos tornados inconscientes pelo hábito, que é como uma casa em que o ator morasse há muito tempo e pela qual pudesse andar de olhos fechados. Cooper escreveu o papel para Bridges, mas quase ficou na mão: ele confessadamente não é de pegar no batente. Só quando soube que seu amigo T Bone Burnett, uma lenda das trilhas sonoras, comporia as canções, topou o trabalho. Ainda que, como de hábito, mal se possa adivinhar que ele está trabalhando.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 10/03/2010
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2010
CORAÇÃO LOUCO
(Crazy Heart)
Estados Unidos, 2009
Direção: Scott Cooper
Com Jeff Bridges, Maggie Gyllenhaal, Colin Farrell, Ryan Bingham
Ricardo Darín

Pau para toda obra
Ricardo Darín, esse patrimônio argentino, é o alicerce de Um Conto Chinês
Em uma canoa, num lago pitoresco, Jun (Ignacio Huang) se declara a sua amada e saca das alianças – que nunca serão trocadas, porque uma vaca cai do céu e mata a moça. Com esse início tragicômico, Um Conto Chinês esclarece, para a plateia, aquilo que Roberto (o indefectível e sempre sensacional Ricardo Darín) não tem como saber: que foi por causa desse infortúnio que Jun, sem família e agora sem noiva, decidiu tentar a sorte em Buenos Aires, onde tem um tio. Roberto, o rabugento e taciturno dono de uma pequena loja de ferragens, é um homem de método: conta quantos parafusos há em cada caixa e, se o número não corresponde ao descrito na embalagem, liga para o fabricante para reclamar. Apaga a luz da cabeceira, todas as noites, no exato instante em que o rádio-relógio vira os números para 23 horas. Nunca come pão sem arrancar-lhe o miolo. Esquadrinha jornais velhos, folha por folha, à cata de notícias bizarras que confirmem sua opinião de que o mundo e a vida são absurdos. Trata com impaciência os fregueses e foge sistematicamente de Mari (Muriel Santa Ana), embora seja óbvio que gosta dela. O espírito de Roberto não admite nada fora do lugar. Por isso, depois que socorre Jun na rua, ao vê-lo ser atirado de um táxi, é disto que sua vida passará a consistir: das tentativas desesperadas de expulsar de sua rotina esse corpo estranho – um chinês que só fala chinês, não tem dinheiro, não sabe onde mora seu tio e não quer de jeito nenhum ir embora da casa do seu relutante protetor.
É Darín, apenas com a ajuda eficiente do seu parceiro de cena, quem sustenta sozinho esta comédia dramática do diretor Sebastián Borensztein. Seco no tom, austero na encenação, simples mas preciso na execução e primorosamente escrito, o filme se alinha a uma corrente que vem ganhando corpo no cinema argentino: competentes no drama sentimental (como O Filho da Noiva), no realismo intransigente (Abutres), no drama de vocação memorialista (O Segredo dos Seus Olhos) e no experimentalismo (O Pântano, único dos filmes citados que não é estrelado por Darín), os cineastas do país têm se mostrado exímios também nas construções minimalistas, a exemplo de O Cachorro e do recente O Homem ao Lado. É um tipo de cinema que exige atores honestos, desafetados e desarmados. Todas qualidades em que Darín, hoje, não tem rival – nem na Argentina nem fora dela.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 31/08/2011
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2011
UM CONTO CHINÊS
(Un Cuento Chino)
Argentina, 2011
Direção: Sebastián Borensztein
Com Ricardo Darín, Ignacio Huang, Muriel Santa Ana, Iván Romanelli
Kristin Scott Thomas

Entre irmãs
É difícil decidir quem está melhor em Há Tanto Tempo que Te Amo, se Kristin Scott Thomas ou se Elsa Zylberstein
Em Há Tanto Tempo que Te Amo, duas irmãs se reencontram com o embaraço evidente dos há muito separados. Léa (Elsa Zylberstein) leva a mais velha, Juliette (Kristin Scott Thomas), para a casa em que mora com o marido, o sogro e as duas filhas pequenas. Recebe-a calorosamente, mas Juliette, cortante e com o aspecto de quem foi maltratada pela vida, não é um alvo fácil para a afeição. À noite, depois de um jantar cheio de silêncios, o marido de Léa diz que não quer ter Juliette em casa – um desplante, já que Léa é tão atenciosa para com o sogro. Ocorre que Juliette não esteve em viagem, como mentiu-se às crianças: esteve presa por quinze anos, em razão de um crime impronunciável. Quando ela conta a um possível empregador – que sabe que ela é ex-presidiária – que crime foi esse, ele a enxota, chocado e repugnado. Não é difícil entender sua reação; a partir daí, aliás, o espectador é que terá de lutar com esse dado acerca da personagem, que dará um novo significado a cada gesto seu e, principalmente, uma nova dimensão à lealdade de Léa: o que se tem aqui, afinal, é menos uma trama de suspense ou um drama sobre a volta ao convívio de alguém que é um corpo estranho, e muito mais a história do amor quase miraculoso de uma irmã. Não porque seja cego, mas porque, como o diretor Philippe Claudel entende tão bem, é um sentimento forjado em outro tempo e preservado intacto, que a caçula Léa irá então racionalizar, dia após dia, na tentativa de recuperá-lo para o instante que ela e a irmã atravessam.
Claudel, que é professor de literatura e ele próprio escritor, domina com facilidade as convenções clássicas do romance – o segredo como o nascedouro do drama, o trajeto da distância à convergência (ou vice-versa) que os personagens têm de descrever. Com tanta facilidade, aliás, que nem a explicação novelesca para o crime de Juliette subtrai de seu impacto. Mas o que de fato distingue seu filme é o trabalho extraordinário das duas atrizes. Kristin faz o que poucos intérpretes têm coragem de fazer, que é não apenas resistir a cortejar a solidariedade do espectador, como francamente repudiá-la. Elsa se propõe uma tarefa ainda mais difícil: expressar maneiras de ser doce e maternal que advêm não apenas da índole, mas do pavor de se descobrir semelhante à irmã no íntimo – e, ainda assim, não ser menos genuinamente doce e maternal. A oportunidade de apreciá-las em um momento tão notável é o que de melhor o filme tem a oferecer.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 24/06/2009
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2009
HÁ TANTO TEMPO QUE TE AMO
(Il y a Longtemps que Je T’Aime)
França, 2008
Direção: Philippe Claudel
Com Kristin Scott Thomas, Elsa Zylberstein, Serge Hazanavicius, Frédéric Pierrot
Que ideia boa essa de falar de filmes nos quais os atores reluzem!
CurtirCurtir