Leia em seguida a minha resenha para o filme publicada na revista Veja.
Choque de realidade.
No capítulo final da saga Jogos Vorazes, não há idealismo que não venha temperado pela experiência. Até a celebração do girl power, aqui, é moderada por ressalvas e advertências.
Como é hábito nos filmes da série, Jogos Vorazes: A Esperança – O Final , começa sem nenhum preâmbulo e retoma a ação do exato momento em que ela havia parado. Mas trata-se de um momento carregado de simbolismo: uma médica examina os extensos hematomas na garganta da protagonista Katniss Everdeen e pede a ela que tente encontrar sua voz. Não é só o inchaço causado por uma tentativa de estrangulamento que silencia Katniss. Joguete de um governo totalitário nos dois primeiros filmes da saga, e brandida como símbolo da resistência no filme anterior e neste capítulo derradeiro, Katniss é uma heroína de singulares lucidez e maturidade – e isso inclui saber que a independência de espírito e a independência de ação não são proporcionais. Seu dilema, portanto, é complexo: quando (ou se) falar com sua própria voz, o que deveria dizer? Que conhecimento ou mensagem poderia propagar que não venha, com o tempo, se provar uma nova mentira?
A saga Jogos Vorazes, da autora Suzanne Collins, é a pioneira da leva recente de distopias para o segmento “jovem adulto”. E é também, com vantagem expressiva, a melhor delas até aqui. Escrita com circunspecção por Suzanne e interpretada por Jennifer Lawrence com a gravidade natural e a garra férrea que primeiro a destacaram em Inverno da Alma, de 2010, Katniss é uma heroína verdadeira: a ficção juvenil é sempre heróica e guiada por conceitos como autossacrifício, abnegação, desprendimento, lealdade, incorruptibilidade, e Katniss é capaz de todas essas coisas. Mas ela já passou fome, já matou muito e acumula um imenso conhecimento pragmático acerca da vida. Seu problema, em cada episódio, é o mesmo, em diferentes contextos – até que ponto deixar-se usar para, em troca, usar também e promover aquilo que seus princípios e sua consciência lhe dizem ser o certo. A matéria-prima, aqui, não é a introdução ao mundo adulto: é o cálculo de prejuízos e benefícios que ser adulto implica.
A maturidade costuma chegar rápido em Panem, um país que se formou a partir dos escombros de alguma catástrofe e no qual doze distritos vivem sob o tacão da Capital e do presidente Snow (Donald Sutherland). Houve um 13º distrito, mas ele foi arrasado 74 anos antes, por causa de um levante. Para que ninguém volte a pensar em rebelião, desde aquela data realizam-se anualmente em Panem os Jogos Vorazes. Cada distrito sorteia um menino e uma menina de 12 a 18 anos, e as 24 crianças são jogadas numa arena para se digladiarem até a morte. Só um vitorioso pode restar. Mas, no ano em que participou, Katniss se recusou a matar o último sobrevivente, seu amigo e ocasional paixão Peeta (Josh Hutcherson), e abalou Panem: como método de controle, poucas coisas são tão eficazes quanto lembrar aos cidadãos que nem seus próprios filhos lhes pertencem, e que o Estado tem sobre eles direito de vida e morte; mas, se é possível subverter essa prerrogativa, tudo o mais pode ser subvertido também.
Em A Esperança – O Final, Katniss está na etapa derradeira do caminho que começou a trilhar naquele dia. Está do lado certo da guerra com a Capital: serve ativamente à resistência, incitando a população dos doze distritos a juntar-se à rebelião. Em suas constantes visitas às áreas bombardeadas pelo presidente Snow, Katniss é seguida por uma equipe de filmagem, que então leva ao ar os discursos inflamados da heroína. Desde o filme anterior, desenhou-se uma cumplicidade interessante entre Katniss e a diretora dessas peças de propaganda, Cressida (Natalie Dormer), que é tão jovem quanto ela: Cressida eliminou da agenda de Katniss os discursos ensaiados, e só filma os momentos em que ela está sendo absolutamente sincera. Cressida talvez queira apenas o valor publicitário da indignação genuína. Ou pode ser que pressinta a mesma coisa que Katniss: do lado certo também há gente errada, e não é improvável que a chefe da resistência, a presidente Coin (Julianne Moore), esteja só à espera de conquistar o poder para se tornar tão tirânica quanto Snow. No desassombrado Jogos Vorazes, até essa norma da cultura pop contemporânea, a celebração do girl power, vem com ressalvas e advertências. É fantasia, mas com um choque de realidade.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 18/11/2015
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2015
JOGOS VORAZES: A ESPERANÇA – O FINAL(The Hunger Games: Mockingjay – Part 2)Estados Unidos, 2015Direção: Francis LawrenceCom Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Julianne Moore, Philip Seymour Hoffman, Donald Sutherland, Mahershala Ali, Patina Miller, Woody Harrelson, Liam Hemsworth, Natalie Dormer, Jena Malone, Jeffrey Wright, Stanley TucciDistribuição: Paris Filmes
Estava órfão dos seus vídeos…
Você é uma das melhores críticas de cinema Brasil!
Ler o que você escreve é um dos motivos que me fez
gostar de cinema, e eu sempre renovo esse prazer
a cada vez que leio uma crítica sua.
Seu texto, tão elegante e claro, também é uma inspiração.
Sucesso (mais ainda) !!
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Eu só fazia o extremo sacrifício de entrar no site da veja pra ler as suas criticas e ver seus videos. Que bom que você tem um veiculo próprio pra se comunicar com seus leitores. E por ultimo e não menos importante: como vc tá gata ❤
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Isabela, que saudades que eu tava de comer assistindo seus vídeos. hahahaha talvez seja um hábito estranho, mas nada melhor que almoçar assistindo suas reviews. ❤
Recentemente entrei nesse mundo dos blogs pra falar sobre ciências, educação e as relações que faço dessas temáticas com artefatos culturais. Seria uma honra que você visitasse o meu blog, tem alguns textos que falam sobre filmes e séries de TV.
http://www.precisamosfalarsobreciencias.wordpress.com
Sucesso com o blog e nessa nova empreitada. Sou seu fã.
Beijão.
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Vi o filme ontem. Realmente ele é excelente. Uma coisa, no entanto, me incomoda nestes finais de série divididos. Vistos em conjunto, os dois filmes finais ficam meio desequilibrados. O primeiro é sempre “parado”, enquanto o segundo é só corre-corre, ação. A ação e os momentos reflexivos poderiam ser mais bem divididos entre os dois filmes, acho eu.
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Parabéns pelo blog, Isabela. Estou muito feliz por poder ver novamente suas críticas. Espero que o blog tenha muito sucesso!
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Muito obrigada, Mauro! E espero sinceramente que seus votos se realizem… 😀
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Críticas superficiais ou ‘compradas’ a gente NÃO lê por aqui. Parabéns Isabela, o que mais admiro no seu trabalho é que, independente do veículo que você esteja se comunicando com o público, suas críticas são sempre justas e honesta – doa a quem doer. Continue assim que nós, seus leitores, continuaremos acompanhando você, sempre.
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Paulo, aprecio imensamente seu comentário. Tenho mil defeitos, como qualquer outra pessoa, mas esse que você menciona espero não ter mesmo e nunca adquirir… e assim continuar merecendo suas visitas aqui ao blog!
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Entrei no ‘Blogs Recomendados do WordPress’ e lá estava o seu, Isabela!
Que bacana que entrei! 🙂
Parabéns pelo espaço. Super clean e ótimos posts. Sempre gosto de conhecer novos colegas de blog assim vou aumentando minha rede e claro, conhecendo sobre diversos assuntos e até mesmo cultura.
Bom, já estou seguindo para não perder as novidades. Sucesso.
Estendo aqui o convite para conhecer o meu blog… Ficarei contente com sua visita! 🙂
HuG!
http://www.andrehotter.com
👻 Snapchat: andrehotter
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Que ótimo, André! Eu nem sabia que estava nos recomendados do WordPress! Agradeço muito a visita, e continue acompanhando. Já visitei seu blog também — e sou outra que adora o limão siciliano… Sucesso para todos nós.
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