Não sou a primeira nem serei a última a notar os paralelos entre Chatô, o Rei do Brasil e o clássico de Orson Welles, que com boa razão sempre – invariavelmente – fica no topo das listas de melhores filmes de todos os tempos. Vai aí uma apreciação, portanto, do original:
O eterno número 1.
Cidadão Kane, que causou uma revolução no cinema, ganha versão restaurada.
Na época em que decidiu fazer Cidadão Kane, Orson Welles era o prodígio em pessoa. Tinha 24 anos e nunca havia usado uma câmera. Mas chegou a Hollywood cercado de rapapés que, até hoje, causariam inveja. Ganhava um salário régio, podia formar a equipe que quisesse e tinha um privilégio que ainda é o maior (e mais raro) de todos para um cineasta: o direito de “corte final”, ou seja, de montar seu filme como bem entendesse, sem interferência do estúdio que o financiou. Welles, porém, não era um novato qualquer em 1939, quando o estúdio RKO mandou buscá-lo em Nova York. Era uma celebridade, devido a suas estripulias no teatro e no rádio – em especial graças a seu falso noticiário sobre uma invasão marciana, que provocara pânico no país. O que a RKO queria de Welles era justamente isso: uma demonstração de originalidade que revitalizasse suas finanças. Ganhou Cidadão Kane, que invariavelmente encabeça as listas dos melhores filmes da história – e é também uma das batatas mais quentes que um estúdio já teve nas mãos.
Para a platéia de hoje, talvez não seja fácil medir a importância de Cidadão Kane. Para o público da época, não havia dúvida: o filme significava uma revolução. O DVD que está sendo lançado agora, em cópia restaurada e acompanhada de um documentário, ajuda a entender essa reverência. A começar pelo tema, o filme é de uma audácia suprema. O Kane do título é Charles Foster Kane (interpretado por Welles), o mais influente barão da imprensa americana. Trata-se de uma caricatura óbvia de William Randolph Hearst, que ocupava essa posição nos Estados Unidos e de quem o roteirista de Cidadão Kane, Herman J. Mankiewicz, fora muito amigo. A fita começa com um cinenoticiário sobre a morte de Kane e logo se transforma numa investigação jornalística sobre o verdadeiro significado da palavra “Rosebud” (ou “botão de rosa”), a última que o moribundo teria dito. Para entendê-la, os repórteres têm de reconstituir a trajetória do protagonista. A história que se segue é contada sob vários pontos de vista, conforme o personagem entrevistado. Na época, não era comum que o espectador fosse assim convidado a tirar suas próprias conclusões sobre o que era dito ou mostrado. Com a ajuda do diretor de fotografia Gregg Toland, Welles radicalizou essa sensação: em boa parte das cenas, toda a ação está em foco, do primeiro plano até o fundo. A platéia é que decide onde fixar seu olhar. O diretor também deu a Kane as dimensões de uma figura mítica, mostrando-o quase sempre de baixo para cima, como se fosse muito maior que os outros personagens. Welles, é preciso dizer, não foi o inventor desses artifícios. Mas teve o arrojo de tornar a forma e o conteúdo de uma história indissociáveis – ora aliando-se, ora contradizendo-se. Em 1941, quando o filme foi lançado, essa era uma experiência capaz de causar trepidação.
O magnata Hearst também sentiu o chão tremer. Graças ao tagarela Mankiewicz, ele soube que Cidadão Kane traria a público detalhes íntimos de sua vida – por exemplo, sobre sua sede de poder e seu longo caso com a atriz Marion Davies. Era o tipo de coisa que todo mundo sabia, mas ninguém se atrevia a comentar. Sua campanha para boicotar o filme e virar os estúdios contra Welles foi implacável. O cineasta terminou a vida, em 1985, mendigando financiamento e não raro atuando em fitas de segunda linha para ganhar dinheiro. Hearst, de fato, ganhou a batalha. Mas perdeu a guerra. Suas investidas só fizeram cimentar a aura mítica adquirida pelo filme e incentivar as novas gerações a conferi-lo de perto. Vale a pena. Nas palavras da crítica Pauline Kael, Cidadão Kane é talvez o único filme que, quanto mais velho fica, mais novo parece.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 17/10/2001
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2001
CIDADÃO KANE(Citizen Kane)Estados Unidos, 1941Direção: Orson WellesCom Orson Welles, Joseph Cotten, Agnes Moorehead, Everett Sloane, Ray Collins, Paul Stewart, Dorothy Comingore, Ruth Warrick
Que maravilha este site, Isabela! Eu adorava ler suas críticas na Veja, tanto que, nas mudanças ocorridas depois de 2014, mantive a assinatura ainda por uns dois anos apenas para ler você. Ter este acervo aqui à mão… nossa! Quanto aprendizado você me está proporcionando! Abraços!
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