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Penny Dreadful

O século da vertigem.

A opulenta Penny Dreadful devolve à era vitoriana o seu verdadeiro caráter: um turbilhão em que nem o maravilhoso nem o terrível pareciam ter limite.

Na Londres de 1893, uma congregação improvável se forma: o explorador lorde Malcolm (Timothy Dalton) e a atormentada Vanessa Ives (Eva Green) contratam os serviços do americano Ethan Chandler (Josh Hartnett), em visita à cidade com seu circo do Velho Oeste, para auxiliá-los na captura à terrível criatura da noite que se apoderou de Mina, filha de lorde Malcolm e amiga de infância de Vanessa. A criatura os elude, mas uma semelhante sua é morta: um ser medonho, de dentes afiados e pele cinzenta e espessa. Para examinar o cadáver, o grupo recorre a um jovem médico obcecado pelo estudo da anatomia: Victor Frankenstein (Harry Treadaway), que, ao primeiro corte, encontra sob a pele um torso recoberto de hieróglifos egípcios. Enquanto, em seu laboratório, Victor dá vida a uma criatura feita de partes de cadáveres, Londres é aterrorizada por um duplo assassinato de barbaridade indescritível, que pode ou não significar o retorno de Jack, o Estripador. Vanessa e lorde Malcolm procuram um egiptologista, em cuja casa Vanessa sofrerá um bizarro transe espiritual, testemunhado com interesse pelo dândi Dorian Gray (Reeve Carney). Penny Dreadful, a série de terror que começou a ir ao ar na sexta-feira 13 pelo canal HBO, tem alma catalográfica: não há elemento da imaginação vitoriana para o qual ela não encontre lugar. Começa pelo seu título, aliás, a homenagem à criatividade fabulosa desse período. Os penny dreadfuls ou penny awfuls eram livretos impressos em polpa de celulose da pior qualidade (daí vem também a expressão pulp fiction) e transbordantes de histórias macabras, palpitantes, violentas ou assombrosas: fenômeno de massificação da leitura entre as classes trabalhadoras, eram baratíssimos (custavam centavos, ou pennies) e aterrorizantes (ou dreadful), ao gosto de seu público.

Se pode parecer espantoso aos homens e mulheres de hoje, por exemplo, que o celular usado com tanta displicência tenha uma capacidade de processamento mais de mil vezes superior àquela de que a Nasa dispunha para colocar a Apollo 11 na Lua em 1969, muito maior seria a vertigem que acometeria um cidadão vitoriano que parasse para examinar as transformações por que seu século passava. A partir dos anos 1830, esse cidadão hipotético teria deixado para trás um mundo rural, regido pela alternância natural entre dia e noite e pela lentidão da tração animal, e estaria tentando acompanhar um mundo intensamente urbano e fabril, iluminado a óleo ou gás e com sua potência e ritmo infinitamente multiplicados pelos motores a vapor. Teria ido dormir, um dia, convicto de que a Bíblia explicava a origem de tudo e despertado, na manhã seguinte, num universo expandido até o limite da incompreensão, no qual os homens se haviam revelado descendentes de macacos. Um mundo no qual tanto as terras distantes quanto aquilo que os seres humanos guardam sob a pele não mais eram mistérios sobre os quais especular: tudo agora era esquadrinhado, eviscerado e anotado por exploradores e cientistas. Em que as oportunidades de fazer riqueza se haviam tornado extraordinariamente numerosas, assim como as chances de escorregar da pobreza antiga para uma miséria nova e extrema. Em que, do lazer ao crime e à pornografia, tudo se democratizava e proliferava de forma antes inimaginável. Um mundo, enfim, em que tudo e qualquer coisa parecia possível.

Como, por exemplo, que pudessem mesmo andar pelas ruas, em carne e osso, figuras da ficção como Victor Frankenstein e sua Criatura, o Conde Drácula e a Mina que ele fora arrebatar em Londres, e o Dorian Gray criado pelo escritor Oscar Wilde, que preservava a beleza e a juventude enquanto as marcas de sua depravação iam aparecendo em um retrato escondido em sua casa. E que eles convivessem sem maiores cerimônias com personagens decalcados da realidade como lorde Malcolm – um amálgama dos muitos exploradores tornados célebres por desbravar o interior da África – e o americano Ethan Chandler, este inspirado em Buffalo Bill, um astro dos shows que reconstituíam os perigos da conquista da Oeste para plateias de bigodão e sombrinha. No fervilhante imaginário popular vitoriano, todas essas pessoas, as verídicas e as imaginárias, poderiam parecer igualmente verossímeis. E, em Penny ­Dreadful, passado o estranhamento do primeiro ou segundo capítulo (são oito no total) de vê-las todas juntas, logo também parece natural que seja assim: fotografada em cenários suntuosamente realistas – a irlandesa Dublin, menos descaracterizada pelas transformações arquitetônicas do século XX, faz o papel da Londres do século XIX – e nos opulentos vermelho-rubi, verde-esmeralda, amarelo-ouro e azul-pavão com que os vitorianos tentavam conter o cinza industrial que avançava sobre seu mundo, a série é uma daquelas experiências imersivas que se valem da profusão de detalhes autênticos para tornar crível a fantasia. Nesse sentido, paradoxalmente, é mais digna de crédito historiográfico do que outras séries produzidas pelo canal Showtime, como The Tudors – que, por ser pretensamente histórica mas repleta de adulterações, servia uma salada mista bem mais desencontrada.

Penny Dreadful deve seu êxito (de público, inclusive: já tem uma segunda temporada garantida) ao seu próprio Victor Frankenstein, por assim dizer: o seu criador e roteirista, John Logan, que costura todos esses braços e pernas de diferentes procedências em uma criatura harmoniosa, que de episódio em episódio vai revelando suas facetas: às vezes é sombria, ou sensacionalista, ou erótica, ou mesmo sensível. Ora essa criatura está fascinada com a ciência, ora se enredando no oculto; ora se debruça sobre a esqualidez tenebrosa da Londres de então, ora mergulha na riqueza luxuriante em que viviam alguns. Logan, curiosamente, não é inglês: é americano de Chicago. Mas já demonstrara compreender muito bem as idiossincrasias vigentes no outro lado do Atlântico em Operação Skyfall, o filme que devolveu James Bond ao seu britanismo mais essencial. A conexão Bond, aliás, é uma das graças de Penny Dreadful, que dá emprego não só a Timothy Dalton, o mais reprovado e esquecido de todos os 007, como a Eva Green, uma bond-girl memorável (em Cassino Royale) e atriz que está em plena alta – em particular quando interpreta personagens cheias de desvãos e licenciosidade, como aqui. Quem mais brilha em Penny Dreadful, porém, é mesmo a sua protagonista – a era vitoriana. Cristalizada na história de colégio como um período de atitudes estáticas e confinantes, ela ressurge aqui no seu turbilhão voraz, de um mundo em que nada, nem o terror nem a maravilha, parecia ter limite.

As obsessões vitorianas

Os temas que alimentavam a imaginação fértil dos ingleses do século XIX

Egiptologia

A curiosidade pelas relíquias do Egito antigo começara com a invasão de Napoleão à região do Nilo, no fim do século XVIII, e nas décadas seguintes não apenas ganhou caráter científico, como virou mania: sociedades de egiptologistas brotavam por toda a Europa e artefatos eram pilhados e vendidos. Descobertas de imensa magnitude, como a localização da múmia de Ramsés II, em 1881, davam impulso renovado à febre

Frankenstein

Publicado em 1818 pela jovem Mary Shelley, o romance de horror sobre um cientista que dá vida a uma criatura feita de partes de cadáveres e então se horroriza com sua criação foi ganhando em notoriedade, e penetrando na imaginação popular, durante todo o século XIX. No fim deste, já se tornara a metáfora consumada da arrogância da ciência em equiparar os feitos divinos

Vampiros

Penny Dreadful se passa em 1893, ano dos “eventos” que seriam “conhecidos” em 1897, com a publicação de Drácula pelo irlandês Bram Stoker. Os vampiros em si não eram novidade: havia séculos eles assombravam o folclore do Leste Europeu. Stoker, porém, pegou na veia do público ao ambientar o enredo na Londres de seu tempo

Orfandade

Em Penny Dreadful, a obsessão de Victor Frankenstein em criar vida vem de sua orfandade. Em parte, essa fixação vitoriana foi exacerbada pela literatura do período, como a de Charles Dickens, cheia de protagonistas órfãos como Oliver Twist. Mas Dickens estava refletindo uma angústia: a da destituição, miséria e doença que vieram com a urbanização

Sessões espíritas

De meados do século XIX em diante, o espiritualismo virou objeto de fascínio na Europa e nos Estados Unidos. Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, foi um de seus mais entusiasmados defensores, e sessões espíritas como a que se vê em Penny Dreadful, como atração de uma festa, eram algo que todo bom anfitrião proporcionaria

Crime violento

As cinco prostitutas retalhadas em 1888 por Jack, o Estripador, são a face icônica da obsessão dos vitorianos pelo crime: com a crescente industrialização e a urbanização, a miséria e a violência haviam se associado de forma devastadora nos bairros pobres. Junto com o crime, viera a curiosidade pela figura do detetive – e Penny Dreadful não é senão uma investigação, ainda que fantasiosa

Exploração africana

A era vitoriana foi pródiga em exploradores que desbravavam o continente africano, incendiando a imaginação dos cidadãos com relatos de maravilhas estranhas a eles. Entre elas estaria uma figura como Sembene (Danny Sapani), o mordomo de lorde Malcolm – uma referência ao menino Kalulu, que o explorador Henry Morton Stanley adotou e levou consigo no retorno à Inglaterra

Ciências naturais

Em 1859, a Teoria da Evolução de Charles Darwin virara de cabeça para baixo o establishment ocidental. O choque entre ciência, moral e religião que ela ensejou continuaria se reproduzindo com força nas décadas seguintes: ao mesmo tempo em que o estudo dos fenômenos naturais ganhou impulso e legitimidade sem precedentes, as questões em torno de sua moralidade adquiriram um volume inédito

Trens e navios

A partir dos anos 1830 os navios a vapor passaram a dominar o transporte intercontinental, e era a eles que a Inglaterra devia muito de sua riqueza. Ao mesmo tempo, a malha ferroviária ia se capilarizando e tornando o deslocamento fácil, rápido e acessível como nunca: estima-se que, por volta de 1845, estarrecedores 30 milhões de ingleses estavam sendo levados para lá e para cá anualmente pelos trens a vapor

Pornografia

Celebrizada como o auge da repressão sexual, a era vitoriana assistiu a uma explosão na pornografia: nas esquinas certas era possível adquirir fotografias e impressos apimentadíssimos, ou entrar em transações carnais elaboradas com profissionais. Em Penny Dreadful, Dorian Gray se aproveita ao máximo dessa facilidade para afastar o tédio.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 18/06/2014
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2014

3 comentários em “Penny Dreadful”

  1. Enfim! Timothy Dalton, meu 007 favorito, o melhor ator a interpretar James Bond, finalmente recompensado com uma série digna de seu nome e a á altura de seu talento.

    Mais do um artigo, este texto é um verdadeiro ensaio da literatura cinematográfica.
    Inclusive na estrutura descritiva, separando em parágrafos os pontos mais ilustrativos a serem enfatizados. Perfeito. Parabéns.

    Sobre a produção (especialmente figurinos e locações) eis a definição que a sintetiza perfeitamente :

    “Penny Dreadful é uma daquelas experiências imersivas que se valem da profusão de detalhes autênticos para tornar crível a fantasia. Nesse sentido, paradoxalmente, é mais digna de crédito historiográfico do que outras séries produzidas pelo canal Showtime, como The Tudors – que, por ser pretensamente histórica mas repleta de adulterações, servia uma salada mista bem mais desencontrada.”

    Exato. ESTE é o ponto mais forte de superioridade na reconstituição histórica. Só por isso, vou assistir. Além do velho Tim, que sempre foi excelente desde jovem e só envelhece como vinho.

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