Talvez exista mesmo, afinal, o amor pleno, especulam os irmãos Dardenne neste filme belíssimo
São tão complexas as virtudes de O Garoto da Bicicleta (Le Gamin au Vélo, Bélgica, 2011) que não há tentativa de descrição que possa fazer jus a elas: eis uma história que não pode ser contada, nem muito menos compreendida em todas as suas repercussões, senão por meio da interpretação de Thomas Doret e Cécile De France e da maneira como os diretores, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, enquadram esses dois atores magníficos. Thomas Doret é Cyril, largado pelo pai em uma instituição e tão profundamente inconformado com esse abandono que não pode, nem por um instante, crer nele – ou seu coração não o suportará. Cyril ama sua bicicleta, e é nela que projeta a necessidade de imaginar que o confinamento ao orfanato não passa de um terrível engano: a bicicleta ainda está no apartamento em que morava com o pai, insiste junto aos exaustos assistentes sociais que tentam conter suas explosões e fugas, porque o pai sabe de seu amor por ela e nunca o trairia. Correndo freneticamente pelas escadas de seu velho prédio atrás do objeto de sua paixão, com seus guardiões atrás de si, Cyril entra em um consultório médico, derruba uma moça que estava na sala de espera e então se agarra a ela. A moça, Samantha, não tenta se levantar ou desvencilhar-se. Permanece no chão, na posição desajeitada em que caiu, e apenas diz a Cyril que, sim, ele pode continuar agarrado a ela – só não tão forte, porque o abraço está doendo. Trata-se de um desses momentos plenos, transformadores, de que só o grande cinema é capaz. Mas é só o primeiro de muitos de igual potência que O Garoto da Bicicleta proporciona em seus breves e intensos 87 minutos, tão cheios de sentimento quanto despidos de qualquer sentimentalismo.
Uma vez que a evolução do relacionamento entre Cyril e Samantha é, como já se disse, algo que não pode ser descrito a contento, conte-se apenas que Samantha é de fato um anjo que entra na vida de Cyril – mas um anjo consumadamente pragmático, cujo afeto se manifesta em franqueza, objetividade e disponibilidade. A bicicleta volta para Cyril; o menino passa os fins de semana no apartamento que Samantha mantém no andar de cima de seu salão de cabeleireiro; o pai é localizado (e, surpresa, ele foi personagem de um filme anterior dos Dardenne). Previsivelmente, não quer nada com o filho, que então se envolve com um mau elemento e é de novo resgatado por Samantha, agora de maneira absoluta. Em toda uma carreira de belos filmes – O Filho, A Criança, O Silêncio de Lorna – dedicados a esmiuçar de quantas maneiras a vida pode dar errado para quem já não a começou bem (vale dizer, para as camadas mais destituídas do proletariado belga em particular, e europeu por extensão), os irmãos Dardenne aqui dão um salto de fé, por assim dizer: examinam uma forma, a única possível, pela qual algo pode dar certo.
Compare-se O Garoto da Bicicleta a, por exemplo, Um Sonho Possível, com Sandra Bullock: aqui não há platitudes sobre boas ações que são sua própria recompensa, ou sobre como seria na verdade a criança enjeitada a completar as afeições da mãe adotiva. Há é muita dureza, e muita clareza também. Os papéis de quem salva e quem é salvo são inequivocamente delimitados; Samantha faz sacrifícios, tanto materiais quanto afetivos, cuja recompensa não é de maneira nenhuma garantida. E, no entanto, eles nunca são entendidos como sacrifícios – nem como favores ou demonstrações de bondade –, porque essa mulher que se recusa a confortar o menino com meias verdades ou carinhos fúteis tem uma segurança inabalável da decisão que tomou, de abrigá-lo e arcar com tudo que isso implica. Por quê?, é a pergunta que o espectador pode se fazer. Porque, sugerem os irmãos Dardenne, talvez exista mesmo o amor pleno, que carece de razão para existir – e o mistério da acolhida de Samantha a Cyril reforça essa hipótese com uma contundência de que filmes mais sentimentais, paradoxalmente, seriam incapazes. Assim como não poderiam compreender quão desafiadora é a decisão do próprio Cyril, de aceitar afinal que o pai não o ama nem deseja para então deixar-se pertencer a Samantha. Como os acordes iniciais do Concerto para Piano Nº 5, de Beethoven, que pontuam certos momentos-chave de O Garoto da Bicicleta, é tristíssimo que tenha de ser assim – e também belíssimo, e embriagador na esperança com que acena.
Publicado originalmente na revista Veja em 23/11/2011