“Distrito 9”, um filme furioso para um mundo feroz

O violentíssimo Distrito 9, sobre alienígenas confinados em uma favela sórdida na África do Sul, não tem nada de sutil. Nem deveria: filmes tão cheios de indignação, imaginação e arrojo servem para quebrar regras, e não se conformar a elas

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Leia aqui a minha resenha publicada na revista VEJA:

A ferocidade deste mundo

O violentíssimo Distrito 9, sobre alienígenas confinados em uma favela sórdida na África do Sul, não tem nada de sutil. Nem deveria: filmes tão cheios de indignação, imaginação e arrojo servem para quebrar regras, e não se conformar a elas

Diz a regra geral da boa narrativa que os recursos de similaridade – metáforas, alegorias, parábolas e aparentados – devem ser utilizados com fineza, de forma a não afrontar o leitor ou espectador com obviedades e não limitar seu conteúdo. Distrito 9 (District 9, Estados Unidos/Nova Zelândia, 2009) fulmina essa regra. Não há dúvida possível sobre o alvo do diretor sul-africano Neill Blomkamp e do produtor neozelandês Peter Jackson, de O Senhor dos Anéis, nesta história sobre alienígenas confinados em um gueto sórdido na África do Sul. O assunto aqui é apartheid, em particular, e segregação em geral; a originalidade está na fúria com que diretor e produtor anunciam e destrincham esse paralelo. Há mais de vinte anos, uma nave imensa parou sobre Johanesburgo – quebrada, e ocupada por algo como 1 milhão de “camarões” (o apelido vem da aparência dos seres) desnutridos, desidratados e doentes. O acampamento provisório para o qual eles foram transferidos virou, claro, uma favela, igual a qualquer outra na pobreza, na explosão populacional e de criminalidade e na desassistência. Mas, como se está na África do Sul, antes até de ser favela ela é um campo de concentração, cercado de arame farpado e de tropas de choque. Como o gueto enfeia e assusta a cidade, o governo decide removê-lo para onde ele não mais será visto. E aí os acontecimentos se precipitam com uma violência aterradora.

No centro desses acontecimentos está Wikus Van De Merwe (o formidável Sharlto Copley), o burocrata que ganhou o comando da operação porque seu sogro quer promovê-lo. Wikus não é um arquiteto da xenofobia, mas um tolo afável que quer fazer bonito diante das câmeras de TV que acompanham a remoção. Ele repete sem nenhum senso crítico os mantras que justificam o apartheid (“o camarão não tem concepção do que é a propriedade”, diz ele, no singular genérico que, em inglês, é particularmente ofensivo) e acha que a invasão do gueto é uma aventura exótica. O estreante Neill Blomkamp, nascido em Johanesburgo, filma essa suposta aventura com o olhar dos afrikaners que instalaram o apartheid para com os negros – os alienígenas são bestiais, comem pneus e enlouquecem com ração de gato, falam com cliques que ninguém entende direito e se refestelam na imundície da favela. É impossível que um ser humano se enxergue neles – e os negros desprezam os extraterrestres com a mesma convicção com que são desprezados pelos brancos.

Blomkamp está tratando de personagens que pertencem, a rigor, à ficção científica, mas Distrito 9 é, em muitos sentidos, um documentário a posteriori. A favela é uma locação real – “100% Johanesburgo”, nas palavras do diretor –, a câmera é de reportagem, o ritmo é vertiginoso, a brutalidade é tremenda, os alienígenas, graças à competência sem rival da equipe de Peter Jackson para criar atores digitais, são aceitos pelo olhar e pelo intelecto como reais desde o primeiro instante. Não é necessário, aqui, firmar com o filme aquele contrato pelo qual se suspende a descrença diante do impossível: a ferocidade do realismo de Blomkamp é tal que o impossível e a descrença nem chegam a entrar em jogo. Só o primeiro e magistral RoboCop, de Paul Verhoeven, conseguira até hoje fundir invenção e cinema-verdade na mesma medida. Até porque, como o holandês Verhoeven, o sul-africano Blomkamp tem uma visão desenganada da humanidade como coletivo.Fantasia, na sua experiência, não é imaginar uma nave sobre Johanesburgo. É acreditar que os ódios raciais podem ser anulados e substituídos pela harmonia ou imaginar que a conversão de um indivíduo é simbólica de algum avanço moral. Em um desdobramento clássico dos filmes sobre o preconceito, o doce e apalermado Wikus põe a mão onde não deve, começa a se sentir meio mal e logo vai aprender o que é ser o outro em um país que o detesta. O ponto aonde isso leva é que não tem nada de clássico: a conversão de Wikus nada significa e nada altera, o ódio permanece intacto, e o medo de que uma vingança esteja fermentando só aumenta. Distrito 9 é, assim, uma sátira. Profundamente triste e brilhante como cinema.

Publicado na revista VEJA de 14/10/2009

Uma consideração sobre ““Distrito 9”, um filme furioso para um mundo feroz”

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