Em “Ataque dos Cães”, o desejo reprimido destrói

Com atuações superlativas de Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Kodi Smit-McPhee e Jesse Plemons, o anti-western de Jane Campion mapeia o poder de devastação da sexualidade sublimada

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Leia aqui a minha resenha da revista VEJA:

Benedict Cumberbatch chega ao auge no excepcional “Ataque dos Cães’

No filme de Jane Campion, ator vive um caubói que não pode dizer nem para si mesmo o que é

Bronco Henry morreu há muito tempo, mas Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) não perde ocasião de enfiar o nome dele na conversa: ele, sim, é que era um caubói; Bronco ensinou a ele tudo o que sabe; Bronco fazia assim ou assado, e dizia isso ou aquilo; Bronco, enfim, é que era homem como os homens devem ser. Para o espectador de Ataque dos Cães(The Power of the Dog, Nova Zelândia/Austrália/Estados Unidos/Inglaterra/Canadá, 2021), que estreia na quarta-feira 1º na Netflix, é óbvio que a fixação de Phil por Bronco vai além da admiração.

E ainda que não o fosse, a maneira como ele trata o rapaz que o serve em um restaurante não deixaria dúvida: ao saber que é Peter (Kodi Smit-McPhee) quem faz as flores de papel que enfeitam as mesas, Phil o ridiculariza com tal escárnio que a mãe do garoto, Rose (Kirsten Dunst), se esconde na cozinha para chorar. Um ataque tão gratuito é, claro, sinal de que o rapaz toca em Phil um nervo. Logo ele estará exposto: George (Jesse Plemons), o irmão quieto e pacato de Phil, vai se desculpar com a viúva Rose. Não muitas semanas depois, os dois estão casados e instalados na sede do imenso rancho dos irmãos Burbank em Montana — e Phil, enojado e provocado por esse elemento sexual que se inseriu na sua vida, passa a torturar Rose e, depois, a tentar afastar Peter dela. Phil acha que o faz por vingança; Peter percebe que os motivos dele são bem outros.

Ambientado nos anos 1910-1920 e publicado em 1967 por Thomas Savage, um escritor que caiu em relativo esquecimento, The Power of the Dog (não existe edição brasileira) é uma das grandes obras da literatura western americana, ao mesmo tempo evocação vívida de um lugar e uma era e uma trama tensa que se articula sobre um profundo estudo de personagem. Em prosa concisa, desadornada e belíssima, Savage aborda um tema raro à época: a homossexualidade reprimida manifestada em forma de homofobia agressiva, rancorosa — e, não menos, a extensão do dano que uma personalidade assim distorcida pela sublimação causa à sua volta. Os direitos de adaptação já haviam sido comprados cinco vezes; nenhum projeto logrou, tal a complexidade da tarefa de transpor para a tela um texto em que aquilo que é visto, dito e feito é um eixo continuamente modificado por um outro eixo, invisível, do qual se percebe apenas o impacto.

A neozelandesa Jane Campion, porém, faz um trabalho superlativo de roteiro e direção na maneira como cria em imagem, ação e diálogo uma outra versão desses eixos. Em Ataque dos Cães, foi-se quase toda a primeira parte do livro, na qual vê-se como o restaurante é a pequena saída que Rose criou para sobreviver com Peter depois que seu marido, um médico alcoólatra, se suicidou em razão de um incidente em que foi humilhado por Phil — um incidente que ela e o filho ignoram. Peter é, desde a infância, objeto de zombaria por ser “estranho”: além dos modos afeminados que as pessoas atribuem a ele, é alheio e imperturbável, dono de uma inteligência prodigiosa e, apesar de amar por completo os pais, não demonstra afeto. Hoje, seria possível especular que ele está no espectro do autismo. Na época, não haveria nem conceitos nem palavras para compreendê-lo — assim como só haveria conceitos e palavras condenatórios para descrever quem Phil é na verdade.

Phil, entretanto, é conhecido por ser tão rude e ascético quanto alguém pode ser. Ele castra bois às dezenas sem verter sangue, lidera a condução dos rebanhos, parece imune à dor. Nas idas à cidade, é o único que não sobe para o quarto do saloon com uma prostituta. Quando bebe, é com a disciplina que aplica a todo o resto; está implícito o seu pavor de, sob efeito do álcool, falar ou mostrar demais. Qualquer fraqueza o repugna porque, sob sua carapaça de narcisismo, ele é repugnante a si mesmo. Para afirmar sua existência — já que a maior parte dela está anulada — Phil usa a tática da invasão. Não toma banho, para invadir o espaço alheio com seu odor. Ostenta os péssimos modos para agredir com a mera presença, e exibe a própria inteligência para humilhar. Quando Rose pratica piano, ele invade os esforços tímidos dela com a mesma melodia tocada à perfeição, de ouvido, no seu banjo.

Sem explicitar nem sublinhar, Jane Campion conjura a atmosfera de rancor e sufocamento para a qual a indefesa Rose é tragada, e então emoldura esse cerne denso com a paisagem vasta e livre, de tal forma que ela adqui­re uma qualidade claustrofóbica. Da mesma forma, Cumberbatch, em um desempenho formidável, abarca tanto o sofrimento quanto a maldade causados pela mutilação psicológica de Phil — e, no momento em que Peter chega ao rancho em visita de férias, também sua fragilidade diante de alguém que consegue viver consigo mesmo numa paz tão misteriosa e inalcançável. Desde 1994, quando ganhou o Oscar de roteiro por O Piano — com que Ataque dos Cães tem inúmeras afinidades —, Campion não recebe um prêmio importante. Se algum senso de justiça prevalecer, porém, neste ano é dela a dianteira.

Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766

3 comentários em “Em “Ataque dos Cães”, o desejo reprimido destrói”

  1. “Resta saber quem é o amor, quem é a espada, e quem é o cão”.

    Ora bem, vamos lá. Até ao túmulo, onde consta uma data : 1880 -1921. A ver que, quando o caubói dá entrada na estalagem, assinala o ano : 1925. Ou seja, quatro anos depois, a viúva apresenta-se bastante ativa, a limpar o chão, cantarolando, ao tempo, prepara acomodação e jantar para os vaqueiros que chegam.
    Convenhamos que não se trata de um desempenho esperado por uma mulher de doutor, um médico; com efeito, ao longo da trama, ela demonstra saber dançar, e a lembrar, que no passado, tocava marchinhas, ao piano, no fosso de cinema mudo.
    Em contraste, o garoto apresenta-se junto a um escrivaninha, a confeccionar flores de papel, que lembram a mãe : ” my mother was a florist”. Tem também um álbum, com a fotografia de um homem e de uma mulher que se destaca pelas flores que carrega.
    Dentro desse enquadramento, é interessante observar como os diálogos ( e as cenas ) ganham outro significado : ” You are beautifull”, diz ele, ” deve ter tido muitos pretendentes”. E ela, vagamente, “sim, pretendentes…”

    Fica assim uma pista para quem é o amor !

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