“Druk”: um desespero silencioso e, então, umas doses de alegria

Em uma atuação esplêndida, Mads Mikkelsen ajuda o diretor Thomas Vinterberg a tirar de uma tragédia pessoal um filme que é uma criatura viva

Assista aqui a resenha em vídeo:


Leia aqui a minha resenha publicada na revista VEJA:

O embriagante filme dinamarquês “Druk”, que concorre a dois Oscars

Quatro amigos de meia-idade combatem a estagnação pessoal com bebida e sentem-se transportados para um estado de juventude — com tudo que isso implica

Não beber no trabalho é uma norma implícita entre pessoas adultas e responsáveis. E, no entanto, em Druk — Mais Uma Rodada (Druk, Dinamarca/Suécia/Holanda, 2020), que em mais um baque da pandemia foi direto para aluguel em plataformas de streaming em vez dos cinemas (no Brasil, está disponível nas principais plataformas), Martin (Mads Mikkelsen), Tommy (Thomas Bo Larsen), Nikolaj (Magnus Millang) e Peter (Lars Ranthe) vêm desempenhando suas funções com muito mais brio desde que começaram a quebrar essa regra. Amigos de longa data e professores na mesma escola de Copenhague, na Dinamarca, eles decidiram testar uma teoria (que realmente existe, aliás) de que os seres humanos têm menos álcool no sangue que o ideal e o equilíbrio neuroquímico seria muito mais satisfatório se um teor de 0,05 mg fosse mantido. Com espírito de traquinagem e num estado de euforia que há tempo nenhum deles experimentava, os quatro contrabandeiam birita no copo de café ou na garrafa de água e, para dar à aventura um caráter científico, trancam-se a toda hora no banheiro para soprar em bafômetros e anotar o resultado. Das 8 da noite até a manhã seguinte, os drinques ficam proibidos, assim como nos fins de semana.

No caso de Martin, que Mikkelsen interpreta de forma arrebatadora, os benefícios são particularmente nítidos: os alunos que haviam pedido a demissão do professor apático agora adoram suas aulas vigorosas, sua extroversão e os ângulos inesperados pelos quais ele aborda a matéria. A crise generalizada em que ele vinha mergulhado recua e, no trabalho e em casa, o êxito é tão evidente que o quarteto logo se pergunta se ele não seria maior ainda com doses mais altas — uma ladeira escorregadia, claro.

Druk é um desses filmes extraordinários que transbordam vida própria, além inclusive do que seu talentosíssimo time poderia planejar. “Toda vez que eu tentava disciplinar e estruturar o filme, ele morria. Tive de aceitar que ele não queria ser domado”, disse a VEJA o cineasta Thomas Vinterberg (leia entrevista), que concorre ao Oscar em 25 de abril. Desde 2013, dois anos depois de ter trabalhado com Mikkelsen, Bo Larsen e Ranthe no avassalador A Caça (Millang veio de outro ótimo filme seu, A Comunidade), Vinterberg vinha moldando o projeto e vendo-o transformar-se na companhia de seus amigos/atores e de seu parceiro habitual de roteiro, Tobias Lindholm. Da ênfase inicial na cultura da bebida, em que os dinamarqueses se iniciam muito jovens, foi-se abrindo espaço central para outros temas. Sobretudo, o emudecimento e empalidecimento que não raro se instalam na meia-idade, e a necessidade vital de reagir a eles — essa, uma faceta que adquiriu ímpeto absoluto quando, no quarto dia de filmagem, Ida, a filha de 19 anos de Vinterberg que faria o papel da filha de Mikkelsen, morreu em um acidente de carro.

Responsabilidades que tolhem, casamentos mornos, filhos adolescentes que se afastam ou filhos pequenos que consomem toda energia, solidão e estagnação são ao mesmo tempo causa e efeito da sensação dos protagonistas de que a vida virou repetição e se está esvaindo. O álcool, porém, rompe esse círculo e os lança de imediato em um estado de liberdade e de curiosidade, de abrirem-se para o mundo em vez de voltarem-se para si mesmos, de estarem inteiros no presente. Transporta-os, enfim, para um estado análogo à juventude — inclusive na rapidez com que eles perdem o controle da situação e rumam para formas às vezes catastróficas de ruína.

Assim, embora Vinterberg e Lindholm documentem com precisão — e muita graça e criatividade — e sem julgamento moral as alterações de comportamento associadas ao teor crescente de álcool no sangue, o que está em questão aqui não é só a dinâmica da relação com a bebida: são as razões pelas quais ela se faz necessária, as armadilhas de que liberta os personagens e as outras armadilhas em que os aprisiona. É um dilema que ultrapassa em muito o controle ou descontrole com que se consome álcool. Trata-se, na verdade, de uma escolha entre sentir-se vivo e agir conforme o exigido e o esperado, e de tentar desesperadamente, na base da tentativa e erro, achar um ponto médio entre os dois polos. Mas a esplêndida sequência final, na qual Mikkelsen — que foi bailarino — dança com abandono extasiante (e sem dublês) no meio de seus alunos recém-formados, não deixa dúvida sobre o que Druk quer afirmar: com ou sem álcool no sangue, é fundamental não deixar que nem um segundo da vida escape.

Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731


Leia aqui a minha entrevista com Thomas Vinterberg:

“Viver sem risco traz tédio”, diz diretor dinamarquês Thomas Vinterberg

Ele conversou com VEJA sobre “Druk”, filme que concorre a dois Oscar

Concorrendo ao Oscar de direção e de filme internacional no dia 25 de abril, o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, de 51 anos, conversou com VEJA sobre Druk.

Seus personagens nesse novo filme se sentem mais vivos quando começam a beber durante o dia. Isso, a seu ver, é sinal de que há algo errado no modo como vivemos a vida? Há muitas coisas erradas em como vivemos. Por onde começar, aliás? Na civilização ocidental, há um desrespeito à idade. Envelhecer equivale a desbotar, e é por isso que as pessoas aceitam esse desvanecimento, porque pensam que é o seu destino. Em nossa parte segura do mundo, também, estamos quase estrangulados pela segurança. A repetitividade na vida pode ser boa; é por meio dela que medimos e entendemos o tempo. Mas excluir os elementos de risco e exploração traz o tédio, e esse se torna uma morte em vida. É contra isso que meus personagens se rebelam.

Como se escolhe o elenco de um filme em que a amizade tem de ser tão genuína e crível? Contrato meus amigos e escrevo o roteiro para eles. O cinema na Dinamarca é pequeno, e nós nos conhecemos há anos. Eles não são apenas meus amigos, claro, mas também atores soberbos e pessoas que admiro, com quem quero passar meu tempo — e não só no set. Também é fundamental dar a eles, na escrita e na direção, uma sensação de passado, para que o espectador sinta que essas pessoas pertencem umas às outras há muito tempo. E Mads (Mikkelsen) é um assombro. É como ter um primeiro violino que lê a sua mente. Ele é de uma precisão e uma inteligência enormes.

Ao ver o filme pronto, o que você achou dele? Dos meus filmes, este é o que eu mais amo, por sua imperfeição, sua irregularidade e sua honestidade, pela sensação de estar desarmado e comemorar a vida. E, claro, por motivos particulares, ele significa mais para mim do que qualquer outra coisa que já fiz.

Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731

Uma consideração sobre ““Druk”: um desespero silencioso e, então, umas doses de alegria”

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