Curto, enxuto e todo feito de nervos, filme húngaro joga com o clássico faroeste “Matar ou Morrer” para tratar de uma culpa que o país trancou no armário
São 11 da manhã de 12 de agosto de 1945. Enquanto o vilarejo rural húngaro segue nos preparativos para um casamento importante, dois homens vestidos de preto descem do trem – um de certa idade, o outro jovem. São evidentemente judeus, e trazem consigo um par de baús pesados. Mal os vê, o chefe da estação ferroviária já cata a bicicleta para ir dar a notícia o mais rapidamente possível. Embora ninguém conheça esses dois homens por ali, a cidadezinha entra em pânico: talvez eles tenham vindo reclamar de volta os negócios, casas, móveis e pertences de que os moradores se apossaram quando os judeus locais foram mandados para o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, na deportação em massa ocorrida na Hungria entre maio e julho de 1944, assim que o país foi ocupado pelos alemães (até outubro de 1944, quase meio milhão de judeus húngaros teria sido executado e cremado às pressas em Auschwitz, num processo de pesadelo que outro grande filme húngaro recente, O Filho de Saul, recria nos seus contornos mais terríveis).
Talvez, supõe o tabelião da cidade – e pai do rapaz que irá se casar –, a dupla de estranhos esteja ali para confrontá-lo, em particular. O tabelião delatou o melhor amigo aos nazistas para ficar com sua farmácia e, em seguida, tomou a iniciativa de carimbar em cartório todas as escrituras de transferência de propriedade forjadas. À medida que os dois desconhecidos caminham atrás da carroça que leva seus baús até um destino ignorado, a polvorosa se espalha. Alguns tramam estratagemas para proteger o fruto do seu roubo. Outros, como o jovem noivo, reagem com consternação: a paz relativa desses primeiros meses após o término da guerra se revela não só fraudulenta como também criminosa. Mesmo o casamento em que ele está entrando é um arranjo precário desses tempos. A noiva está muito mais interessada na farmácia roubada pelo sogro ao amigo judeu do que no noivo; sua paixão é pelo contrabandista local, de posição incerta agora que o escambo de guerra acabou.
Na premissa e no desenrolar em tempo real, 1945 graceja de um jeito muito sério com o faroeste clássico Matar ou Morrer, de 1952, em que o xerife interpretado por Gary Cooper, a pouco mais de uma hora de entrar na igreja para se casar com Grace Kelly, é o único homem da cidadezinha disposto a enfrentar os malfeitores que vão descer do trem ao meio-dia; todos os outros moradores se acovardam ou mesmo imaginam artimanhas para cair nas graças dos bandidos. Já no preto e branco muito luminoso e de alto contraste, nos enquadramentos magníficos, compostos como se fossem quadros, e acima de tudo no tom mordaz, percebe-se que Ferenc Török, o diretor de 1945, é admirador do estupendo A Fita Branca (2009), em que o cineasta alemão Michael Haneke investiga os traços e perversões culturais que terminariam por confluir no nazismo e em Adolf Hitler. Como em ambos esses filmes, está em jogo aqui uma trinca nas fundações do caráter coletivo que faz com que a ética se degrade em autopreservação, depois em covardia e por fim numa indiferença inumana. A Hungria de hoje faz o que pode para barrar mesmo o trânsito de refugiados, e a Polônia baixa lei para decretar que ficou isenta do Holocausto. Mas a última imagem de 1945 é uma dessas coisas antológicas: com ela, Ferenc Török argumenta que certas culpas até parecem se dispersar, ou podem ainda ser escondidas e trancadas a sete chaves – mas continuam suspensas no ar, prontas para se manifestarem, e quem quiser ir atrás delas as encontrará lavradas em cartório.
Trailer
1945
(Hungria, 2017)
Direção: Ferenc Török
Com Péter Rudolf, Bence Tasnádi, Dóra Starenki, Tamás Szabó Kimmel, Ági Szirtes, József Szarvas
Distribuição: Supo Mungan