Farra e perigo são sinônimos na história real do piloto que trabalhou para a CIA e para Pablo Escobar ao mesmo tempo
A melhor coisa da persona ultracompetente, ultraprofissional e ultramoral que Tom Cruise criou ao longo da sua carreira, de Top Gun ao último Missão: Impossível, é que, quando ele decide bater de frente com ela (o que é muito raro), a topada conta – como em Magnólia, ou em Colateral, ou agora em Feito na América: com o cabelo virado para qualquer lado, a camisa manchada de suor e uma efervescência que a certa altura começa a virar desespero puro e simples, Cruise voa para lá e para cá, da América Central ao Sul dos Estados Unidos e vice-versa, entregando armas para milícias na selva nicaraguense, recolhendo carregamentos de cocaína em pistas de terra na Colômbia, tomando tiros de surpresa em apartamentos de traficantes em Bogotá, negociando com agentes da CIA cujo nome verdadeiro ele nunca soube nem saberá, e tentando explicar o inexplicável à mulher – como é que, de repente, ele anda trazendo para casa toneladas de dinheiro vivo de deixar no chinelo aquelas que aqui são encontradas em cuecas e em apartamentos vazios. O mais fantástico da história de Barry Seal, o personagem de Cruise, é que ela é verdadeira. Mas, se tentassem inventá-la, soaria impossível.
Seal foi um dos mais jovens pilotos contratados até então (a história começa nos anos 70) pela TWA, e também um dos mais alucinados: aproveitava os voos para faturar fazendo contrabando, e a certa altura perdeu o emprego sob a acusação de ter transportado explosivos para o México num jato de passageiros da companhia. Sua doideira lhe valeu outro emprego, porém, embora clandestino: foi recrutado pela CIA para fazer entregas regulares de armas na selva da Nicarágua para os Contras, a milícia de direita que combatia o governo de esquerda dos sandinistas, inaugurado em 1979 (e o retrato que o filme faz da inépcia dos Contras é delicioso). Mas tantos voos rasantes sobre a América Central não passariam despercebidos ao cartel de Medellín – o que valeu a Seal outro trabalhinho, proposto a ele por Pablo Escobar: se na ida ele levava armas para os Contras, na volta deveria carregar as toneladas de cocaína do megatraficante para os Estados Unidos. Cada viagenzinha dessas terminava com uma remuneração aí dos seus 500 mil para dólares em espécie para Seal, que literalmente já não tinha mais onde enfiar tanto dinheiro. As complicações vieram na mesma proporção; sem contar demais, digo apenas que Seal foi parar no meio do mais bombástico escândalo da presidência de Ronald Reagan. A pegada de Feito na América, porém, está bem mais para Prenda-me Se For Capaz do que para Narcos; Seal era pândego demais para ter crises de ego ou consciência, e estava por demais ocupado metendo-se em enrascadas para parar e pensar. O que o diretor Doug Liman faz, portanto, é tocar no mesmo tom que o personagem, recriando num ritmo desatinado, e saborosíssimo, uma vida em que perigo e farra eram sinônimos – e que o próprio personagem recapitula e narra, com um misto de perplexidade e fanfarronice acerca dos seus feitos inacreditáveis.
Feito na América é o segundo filme de Cruise com Doug Liman (no primeiro, a ficção científica No Limite do Amanhã, o diretor conseguiu convencer o astro a interpretar um covarde incompetente, e a fazê-lo com muita graça e espírito; uma continuação já está em preparação). Espero que a parceria continue a render: Liman sabe usar a energia incessante do seu estilo de forma a compor uma moldura para a energia também ela inesgotável do ator; em vez de competirem por espaço, esses dois vendavais se somam. Mais importante, talvez, é que Liman conquistou a confiança de Cruise a ponto de fazê-lo sair em alguma medida da sua fôrma habitual. Por mais cativante e irresistível que Seal seja, ele é também sem sombra de dúvida um escroque, um inconsequente e um narcisista (que calhou de pagar um preço alto por suas estrepolias, o que permite a Cruise fazer a omelete sem quebrar os ovos: tanto ele se diverte na pele de um irresponsável, quanto satisfaz os códigos éticos de sua carreira). Liman é um diretor que nem sempre recebe o devido valor, mas mereceria. Eis uma pequena contabilidade dos seus feitos: na metade dos anos 90, ele ajudou a dar largada no cinema independente de vertente mais rave com Swingers e Vamos Nessa!; inventou Matt Damon como astro de ação e reformatou o filme de espionagem com A Identidade Bourne; deu novo fôlego ao filme de ação que não se leva a sério com Sr. & Sra. Smith (além de, por acaso, ter promovido com ele o casamento mais célebre de Hollywood no século 21); e agora está embarcando numa fase de garimpo de grandes histórias reais. Seu próximo projeto, depois de Feito na América, é Attica, sobre a rebelião de 1971 no presídio de mesmo nome, que terminou com um massacre dos prisioneiros pelas forças estaduais de Nova York. (Curiosidade: o advogado Arthur Liman, pai de Doug, foi o principal investigador legal da comissão estadual que analisou os acontecimentos no presídio de Attica, e também o conselheiro legal chefe do Senado americano no escândalo em que Barry Seal entrou de gaiato.) Pode até ser que os filmes que Cruise fez com Liman não sejam os mais lucrativos da carreira do ator. Mas, se continuar pegando carona na inquietação do diretor, aborrecer-se, ao menos, ele não vai.
Trailer
FEITO NA AMÉRICA
(American Made)
Estados Unidos, 2017
Direção: Doug Liman
Com Tom Cruise, Domhnall Gleeson, Sarah Wright, Jesse Plemons, Caleb Landry Jones, Alejandro Edda, Benito Martinez
Distribuição: Universal