Na Netflix, uma história mal contada rende um bom filme
Os espanhóis costumam ser bons no suspense/mistério (assim como no terror), e Um Contratempo, que entrou há pouco na Netflix, não foge ao padrão: luxuriante, cheio de reviravoltas e de acordes intensos, lembra muito o Brian De Palma de Vestida para Matar ou Dublê de Corpo – menos as cenas de violência arrepiante de que De Palma era fã. A premissa é um clássico do gênero: um sujeito que se diz injustamente acusado por um crime narra sua história à advogada que vai elaborar sua defesa. Toda a história, insiste a advogada. Desde o começo, sem deixar nenhum detalhe de fora. A cada passo, ela desafia e contesta a versão dele dos acontecimentos – porque o promotor, o juiz ou o júri o farão, e é preciso sondar essa versão cuidadosamente em busca de inconsistências.
De onde o empresário Adrián Doria (Mario Casas), principal suspeito no homicídio da fotógrafa Laura (Bárbara Lennie), conta à experiente Virginia Goldman (Ana Wagener) como arrumou um caso extraconjugal com Laura, também ela casada, com o entendimento de que nenhum dos dois iria falar em deixar o marido ou a esposa. (Não se preocupe, não há nenhum spoiler neste parágrafo.) Mas, passados alguns meses de aventura, diz Adrián, o arrependimento começou a bater. Na volta de um encontro amoroso, discutindo com Laura sobre seu desejo de romper, Adrián perde a direção do carro quando um cervo atravessa a estrada – e, no rodopio, colhe outro veículo. Ele e Laura não sofrem nenhum ferimento; o rapaz que dirigia o outro carro morre ali, no local do acidente. E Laura, surpreendentemente, impede Adrián de ligar para a polícia: o caso deles será tornado público, os respectivos parceiros vão abandoná-los, os negócios de Adrián vão ser prejudicados pela fofoca negativa. Se já não há o que fazer pelo rapaz, por que comprometer-se tanto por nada? Melhor aproveitar que a estrada é deserta e esconder o corpo e livrar-se do automóvel, raciocina Laura.
Isso é só o começo – bem o começo. O diretor e roteirista Oriol Paulo é um aluno atento das lições de Hitchcock e de De Palma, e a cada passagem essa história se amplia, e revela-se uma outra camada sob ela – e outra, e mais outra, numa espiral cujo centro real se mostra sempre mais longe do que se suspeitava. Mario Casas não é um ator especialmente forte, mas Ana Wagener compensa as deficiências dele fazendo o trabalho pesado e mantendo o clima tenso e combativo entre eles. Dos outros atores, não falo nada, porque quanto menos se souber sobre quem mais faz parte dessa história, melhor.
UM CONTRATEMPO
(Contratiempo)
Espanha, 2016
Direção: Oriol Paulo
Com Mario Casas, Ana Wagener, José Coronado, Bárbara Lennie, Francesc Orella, Paco Tous