Esses argentinos, sempre dando um banho
Mais um capítulo da série “vá fazer filme bom assim lá no vizinho”: Rodrigo Grande, um diretor e roteirista argentino que está já no seu quarto longa-metragem, mas cujo trabalho eu ainda não conhecia, deu três voltas em mim com este suspense impecável, protagonizado pelo sempre excelente – e aqui estupendo – Leonardo Sbaraglia, de O Silêncio do Céu e Relatos Selvagens, e por uma espanhola, Clara Lago, que é um vulcão (do tipo ativo).
Joaquín, o personagem de Sbaraglia, é um cara amargo: está preso a uma cadeira de rodas, e essa nem de longe foi a pior das consequências do acidente que o vitimou. Joaquín não arruma mais a casa espaçosa e ainda bonita em que mora em Buenos Aires: não tira as teias de aranha, não lava a louça, não limpa o mato do jardim, não sobe mais ao andar de cima. Apenas desce ao porão, único lugar para o qual um elevador foi instalado. Lá embaixo, conserta computadores, fuma um cigarro atrás do outro, faz um carinho no seu cão, Casemiro, que está à morte, amargura-se mais ainda. E, como passa por dificuldades financeiras, anuncia um quarto para alugar.
Berta, o vendaval que entra pela sua porta com as pernas de fora, cabelão caindo pelas costas, um jeito insolente de falar e com a filha pequena pela mão, não é a inquilina que ele tinha em mente – com uma mulher assim em casa, vai ser difícil ter sossego para se deprimir à vontade. Mas Berta nem dá a chance a ele de dizer não: em minutos, já se instalou ali com Betty, que tem 6 anos e há dois deles não fala uma palavra sequer.
É um ataque em dois flancos, por assim dizer – Berta com seu erotismo e vivacidade, Betty com sua desproteção e inocência. Casemiro reage bem a Betty (“ei, seu cachorro múmia se desmumificou”, é como Berta dá a Joaquín a boa nova da recuperação do cão), Berta arruma a casa; Betty começa a deixar que Joaquín se aproxime dela, Berta faz um strip-tease para ele. Mas, enquanto esses relacionamentos vão se desenhando em imitação de uma dinâmica familiar, lá embaixo, sob o piso do porão, um grupo de bandidos cava um túnel que vai levar até o cofre do banco vizinho à casa. Joaquín, tão íntimo do espaço que até há pouco ocupava sozinho, logo nota os ruídos mínimos criados pela escavação – e, observando atentamente a movimentação dos ladrões por meio de microfones e microcâmeras, bola seu próprio plano. Que é arriscado, depende de contingências quase impossíveis de prever e, além disso, vai levar Joaquín para perto de figuras sinistras como Galereto (Pablo Echarri), o líder dos criminosos, e Guttman (Federico Luppi), um policial da velha guarda – leia-se, dos tempos da ditadura militar – que tem interesses específicos na operação.
Conversei um pouco com Rodrigo Grande, que veio a São Paulo para lançar seu filme, e ele contou que começou a escrever No Fim do Túnel como maneira de se sacudir do fim de um longo relacionamento – tanto do inevitável sentimento de culpa por não ter sido capaz de preservar o casamento, como também do sentimento de que sua casa se tornara um lugar desagradável, hostil. Segundo Grande, ele pensou estar escrevendo o oposto de tudo que vivia, até se dar conta de que, ao contrário, estava desconstruindo e então reconstruindo, de um jeito diferente, as coisas que atravessara.
Não é uma informação necessária ao espectador para que ele aprecie o filme e se envolva com ele. Mas explica algo da garra, da tensão e da compressão emocional que ele imprime a No Fim do Túnel. Outro dado curioso: perguntei a Grande se ele era fã de Brian De Palma, porque achei que não só o suspense e alguns dos truques, como principalmente o clima perigoso do filme tinham um quê de Um Tiro na Noite e Dublê de Corpo. Resposta dele: sim, mas tem muito mais de Steven Spielberg, que ele considera o grande mestre moderno, e nem sempre compreendido como tal, do suspense. Sou obrigada a concordar: na maneira meticulosa e controlada como No Fim do Túnel vai se desdobrando, ele é sim aparentado de, por exemplo, Ponte dos Espiões. Quer dizer – mas com aquela eletricidade dramática e aquela disposição de sujar as mãos de sangue que são a marca do bom cinema argentino.
Trailer
NO FIM DO TÚNEL
(Al Final del Túnel)
Argentina/Espanha, 2016
Direção: Rodrigo Grande
Com Leonardo Sbaraglia, Clara Lago, Uma Salduende, Pablo Echarri, Federico Luppi, Walter Donado, Javier Godino
Distribuição: Warner
Não sou cinéfilo,mas lendo suas críticas ou resenhas(?),me dá vontade de ser.
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Isabela, após ler seus comentários, fui correndo assistir o filme. E olha, é um filmão. Recomendo a todos.
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Isabela
Voce é uma excelente crítica de cinema. Não quer exibir conhecimentos enciclopédicos, nem teorias linguisticas, nem mostrar que sabe o que os diretores pedantes pensam (sabe, o livro Teoria dos cineastas?).
Muito bom ler seus textos.
Abç
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Adoro os comentarios da Isabela Boscov. Ao contrário de outros ela faz comentários procedentes. Acho que é afinada com o público. Enfim, ainda não me arrependi de ter assistido nada que ela comentou. E adoro seus textos. Voce é muito boa
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Gostaria de saber porque os críticos de cinema acham que fazer a “crítica” de um filme é contar o filme todo!
Fazer a crítica de um filme é falar sobre o gênero dele, sobre o roteiro, a direção, o trabalho dos atores, fotografia, cenário, ambientação.
Não vejo críticos de cinema assim há muito tempo.
Só vejo spoilers!
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É o problema sempre aqui deste site (que não é culpa dele): Leia o cabeçalho, isso aí propositadamente não é crítica, é resenha. Se você procura crítica, vá para outro site.
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Vejo pessoas que devem fazer uma leitura preguiçosa para não perceber ou não compreender, que estava escrito resenha no início do texto.
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Penso o mesmo Graciela. Triste que a crítica não ajude a contar a grandeza da linguagem do cinema. É mais bem uma opinião do que uma crítica.
Isabela, fica a dica. Se quiser explorar melhor a linguagem do cinema nas suas opniões dá um toque. Fico feliz em ajudar.
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Cruiz credo! Que arrogância! Abre um blog e despeja lá sua imensa inteligência e conhecimento.
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Só rindo.
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