A arte etérea de um homem bruto
No papel-título de Sr. Turner, filme do diretor inglês Mike Leigh que sai agora em DVD, Timothy Spall surge feio, atarracado, grosseiro, com dentes pavorosos: o homem é o inverso de sua arte.
A pintura de Turner é etérea, fugidia, arrebatadora; já o pintor, esse é, no desempenho glorioso de Spall, de uma fisicalidade bruta e intrusiva. Turner raspa as telas com suas unhas feiosas, farta-se com uma cabeça de porco, ronca, grunhe e resfolega, apalpa o seio da empregada sem pedir licença (e a empregada, lindamente interpretada por Dorothy Atkinson, olha para ele com devoção).
Quando as filhas o visitam, ele age como se estivessem extraindo-lhe um dente. Com seu pai, contudo ele é só doçura. Ao conhecer Sophia Booth, uma viúva gordota e simples (e encantadora), ele diz que ela é uma mulher de uma beleza profunda. Não é um galanteio: Turner está olhando para ela como olha para o mundo, identificando algo de sublime onde outros só veem o banal.
Fotografado de forma a reproduzir os estilos pictóricos cujo caudal alimentou Turner, o filme de Leigh é uma maravilha. Faz jus ao artista, e compreende o homem.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 05/08/2015
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2015
SR. TURNER(Mr. Turner)Inglaterra/França/Alemanha, 2014Direção: Mike LeighCom Timothy Spall, Dorothy Atkinson, Marion Bailey, Paul Jesson