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Pietà

Criatura estranha

Místico, brutal e desestabilizador no seu horror e na sua beleza, Pietà ilustra as virtudes do cinema sul-coreano.

No cinema, certos excessos só convencem quando cometidos em zonas específicas — por exemplo, no leste, acima do paralelo 35 Norte, onde Japão, China, Coreia do Sul e Rússia se destacam na arte de uma tragédia hiperbólica e alegórica completamente estranha às noções ocidentais do que é crível ou aceitável. Os coreanos, em particular, não parecem ter freio, e por isso fazem hoje o cinema mais original, palpitante e perturbador que há. Veja-se, por exemplo, o trabalho de diretores como Chan-wook Park (Zona de Risco, Sede de Sangue e Oldboy), Joon-ho Bong (O Hospedeiro, Mother e Memórias de um Assassino), Hong-jin Na (O Caçador) e Ki-duk Kim, de Casa Vazia, O Arco e este Pietà, ganhador do Leão de Ouro em Veneza.

Aqui, um rapaz vive de ameaçar com brutalidade indizível as pessoas que não saldaram suas dívidas para com agiotas. Todas as vítimas de Gang-do (Jeong-jin Lee) vivem no mesmo lugar que ele, um velho centro dilapidado de alguma cidade sul-coreana.Todas pegaram dinheiro emprestado a juros escorchantes em um momento de desespero: são sempre pequenos comerciantes, operários, mecânicos. Gang-do até gosta que eles não paguem, pois assim pode espancá-los e mutilá-los (usando as próprias ferramentas com que eles trabalham), no que tem grande prazer, para recolher então seu seguro de invalidez. Certo dia, porém, uma mulher de seus 40 e poucos anos bate à porta de Gang-do, diz ser a mãe que o abandonou no nascimento e não arreda mais pé dele, apesar da violência chocante com que ele a trata. A despeito de si mesmo, então, Gang-do começará a experimentar as primeiras pontadas de sentimentos que há muito tempo não conhecia, se é que algum dia chegara a conhecê-los: amor, desejo de proteger, algo parecido com compaixão. Assim, quando a mãe (Min-soo Jo) é sequestrada, ele se desespera: já não pode viver sem ela. E começa a visitar todas as suas vítimas, certo de que o rapto é uma vingança.

É capciosa a alusão que Ki-duk Kim propõe desde o título com a Pietà, a imagem clássica da Virgem Maria acalentando em seus braços o Cristo morto, cuja versão mais conhecida é a da escultura de Michelangelo. Há no filme, sem dúvida, uma mãe que lamenta seu filho; há ainda, como Gang-do suspeita, uma vingança. Mas a maneira como esses elementos se organizam é estarrecedora, tanto do ponto de vista da imaginação com que é concebida como da sua ressonância religiosa – um bocado heterodoxa, é verdade, mas também tão mística e profundamente infundida da noção de sacrifício que poderia ter saído da cabeça de um monge medieval. O final, porém, vai além até do que uma devoção febril seria capaz de inventar. É de um horror, e de uma beleza, que só mesmo cineastas sem amarras nem limites, como os sul-coreanos, conseguiriam gestar.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 20/03/2013
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2013

Pietà
Coreia do Sul, 2012
Direção: Ki-duk Kim
Com Jeong-jin Lee, Min-soo Jo

Uma consideração sobre “Pietà”

  1. alusão capciosa mesmo.

    a maneira como esses elementos se organizam…

    heterodoxa?

    estarrecedora?!

    horror e beleza?!

    “tanto do ponto de vista da imaginação como da ressonância religiosa”?!

    pombas.

    preciso assistir isso.

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