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“O Irlandês”: o arrebatador olhar de Martin Scorsese sobre a máfia
Com seu estupendo domínio de cena, o diretor conta sua versão de uma história real – e impregna o filme feito para a Netflix com a angústia do esquecimento
Continuar lendo “O Irlandês”: o arrebatador olhar de Martin Scorsese sobre a máfiaTerceira temporada de “The Crown”: no reino da discórdia
Série fala muito de perto à Inglaterra politicamente tumultuada de hoje – e passa em um difícil teste: a troca completa de elenco
Continuar lendo Terceira temporada de “The Crown”: no reino da discórdiaQue rei sou eu?
“O Rei” é um exemplo de ambição feliz: cita o “Henrique V” de Shakespeare e o confronta para discutir as qualidades que deveriam definir um estadista
Continuar lendo Que rei sou eu?“TUBARÃO”: O VERÃO DO PÂNICO
Em 1975, em um lance de mestre, Steven Spielberg evocou não só o medo, mas também o fascínio, da presa diante do predador — e assim inventou o cinema arrasa-quarteirão
Em 20 de junho de 1975, às vésperas das férias de verão, 400 salas de cinema em território americano sofreram um ataque sem precedentes: foram invadidas por uma criatura mecânica, recoberta com pele de borracha, que fotografada dos ângulos certos era idêntica a um grande tubarão-branco. A criatura demorava uma hora de filme para fazer sua primeira aparição por inteiro, com a bocarra escancarada; até ali, só se viam sua barbatana dorsal cortando a água e o rastro de sangue e morte que ela deixava atrás de si. De forma que, quando ela finalmente surgia em cena, a plateia estava já tomada pelo pânico e nem era mais capaz de notar que o tubarão assassino do diretor Steven Spielberg era um bocado falso e inerte (na verdade, na primeira vez em que foi lançado à água, foi direto para o fundo).
Tubarão inaugurou o cinema arrasa-quarteirão e causou comoção popular. Nas cidades praianas americanas, a frequência de turistas despencou. Para se ter uma ideia: 67 milhões de pagantes foram ver o filme só nos Estados Unidos. Sua renda mundial, ajustada para a inflação, seria hoje equivalente a mais de 2 bilhões de dólares, o que o colocaria atrás apenas de Titanic e Avatar. Naquele verão de 1975 (e o lançamento brasileiro, em 25 de dezembro, também pegou em cheio a temporada de calor), ninguém nadou tranquilo. Nem em piscina: bastava haver água e alguém já saía imitando o “tan, tan, tan, tan” da trilha de John Williams, levando a garotada à histeria. Nas praias americanas, houve episódios de linchamento de golfinhos e filhotes de baleias confundidos com tubarões. Spielberg, um quase estreante de 28 anos, tocara em uma veia profunda: o pavor primal da presa diante do predador, que ganhava força redobrada por causa daquela hora de suspense em que nada se via e tudo se imaginava. Os tubarões passaram a ser mais do que temidos. Tornaram-se vilões na imaginação popular, caçados e demonizados – ao ponto de Peter Benchley, autor do best-seller em que o filme se baseia, declarar seu arrependimento. Mas, para quem viu Tubarão no cinema em 1975, no auge do alvoroço, o trauma é quase incancelável: não foi só o pavor que Spielberg evocou — foi o fascínio do predador, e a rendição que a presa sente diante do poder dele. Isso não é coisa de bom diretor. É coisa de mestre.
Publicado na revista VEJA em 29/07/2015
EM “NO VALE DAS SOMBRAS”, UM NOVO ABISMO
Tommy Lee Jones e Charlize Theron mergulham, à distância, no horror da Guerra do Iraque neste drama devastador feito “a quente” pelo diretor Paul Haggis
No devastador No Vale das Sombras (In the Valley of Elah, Estados Unidos, 2007), Tommy Lee Jones é um militar aposentado que procura pelo filho: em licença numa base americana depois de um período no Iraque, o rapaz não só deixou de se reapresentar ao pelotão, como parece ter sumido da face da Terra. Em alguns dias, será declarado desertor. O pai, Hank, conversa com os amigos e os superiores do filho, liga para velhos companheiros pedindo ajuda, vai à polícia – e encontra apenas evasivas ou desinteresse. Numa visita ao alojamento do desaparecido, surripia o celular deste, onde encontra fragmentos de imagens feitas durante ações. Tommy Lee Jones é um mestre da introversão e, quanto menos ele fala, mais o espectador se conecta ao seu pressentimento de que algo terrível aconteceu. Quão imensamente terrível, porém, é algo que só saberá ao final da investigação conduzida por Hank e pela detetive de polícia Emily (Charlize Theron, numa grande atuação). O novo filme do diretor Paul Haggis representa um colossal salto dramático em relação ao ultramanipulativo Crash. Haggis usa a forma do whodunit, em que se tenta identificar o autor de um crime, para chegar a um culpado bem mais incontrolável do que este ou aquele homem: a guerra. Não a guerra como entidade genérica, mas esta guerra, a do Iraque, com suas especificidades. No Vale das Sombras é um dos primeiros filmes a fazer tal indiciamento, mas não será um dos únicos. Num fenômeno sem precedentes no cinema americano, o conflito no Iraque começa a originar produções em número suficiente para constituir desde já um gênero.
Das sugestões tanto de sofrimento quanto de sadismo contidas nas imagens do celular do soldado desaparecido à relutância do comando militar em que se apure o seu paradeiro – além da má vontade da polícia local, cansada dos problemas com combatentes em licença –, o cenário que o diretor e seus dois protagonistas desenham é perturbador: um cenário em que o travo de ilegitimidade que paira sobre essa guerra transforma a própria natureza dos homens que vão lutar nela, fazendo deles seres irreconhecíveis no front e párias em casa. Hank, que lutou no Vietnã, não compreende como algo tão monstruoso possa ter acontecido a seu filho, e com ele. A conclusão a que No Vale das Sombras assoma, então, não é que o Iraque seria um novo Vietnã. É que pode estar sendo ainda pior do que ele.
Publicado originalmente na revista Veja em 14/11/2007