Entrou na Netflix: cinco filmaços

Pode bem ser que eu esteja chovendo no molhado, mas vai saber se a sua Netflix põe em destaque as mesmas coisas que a minha? Então, cinco sugestões completamente diferentes umas das outras, mas todas excelentes:

Dunkirk

Uma experiência implacável – mas não à maneira incessante dos célebres vinte minutos iniciais de O Resgate do Soldado Ryan. Na recriação de Christopher Nolan, a imersão no caos que foi o encurralamento de quase meio milhão de soldados contra o mar pelas forças nazistas vem sobrepesada pelo desalento e pela impotência e, ao final, por um acontecimento tão extraordinário que, da derrota quase fatal para Adolf Hitler, a Inglaterra em um único dia encontrou toda a fibra para suportar mais cinco anos de guerra feroz. Sempre se atirando à tarefa de expandir o escopo técnico e narrativo do cinema, Nolan atinge aqui um virtuosismo e um impacto fora até de seus padrões: rodado em 70 milímetros, no sistema Imax, com o mínimo incontornável de efeitos digitais, até 4 000 figurantes em cena e ação real, Dunkirk é ambicioso e majestoso como quase nada mais o é hoje. E, para mim, das coisas mais emocionantes dos últimos anos.

Dunkirk (2017)

Blade Runner 2049

De alguns filmes, volta-se ao curso do tempo, quando as luzes do cinema se acendem, da mesma maneira que de um sonho: com estranheza para o lugar ao qual se retorna, e com a frustração de ser impossível descrever a vividez e o empuxo do mundo do qual se saiu – só tendo estado lá para entender. Blade Runner 2049 desafia a tentativa de pô-lo nas palavras justas. Mas vê-lo é estar lá. À medida que o filme do canadense Denis Villeneuve se fecha em torno da plateia e a envolve no seu mundo estarrecedoramente bem realizado, o espectador esquece que não é personagem e não participa da ação. Esse efeito mimético é, claro, uma ambição constante do cinema, e muitas vezes alcançada. Mas sustentá-lo de forma contínua e aprofundada por quase três horas é uma façanha. Blade Runner 2049 é todo ele uma façanha: para mim, é uma continuação que se alça acima e além do filme original e ocupa uma esfera só sua: a da primeira obra-prima indisputável da ficção científica neste século. Com seu ritmo deliberado, suas escolhas simbólicas e seus cenários monumentais e ao mesmo tempo desoladores, Villeneuve cumpre aquilo a que o gênero se destina: usar um futuro hipotético como um espelho em que o presente é obrigado a se olhar – e, sobretudo, fazer com que o homem enxergue nele o próprio reflexo. E, sim, adoro o desempenho de Ryan Gosling.

Blade Runner 2049 (2017)

O Agente da U.N.C.L.E.

À medida que não só a série 007 mas todos os filmes de espionagem, de Kingsman a Missão: Impossível, evoluem mais e mais para a ação de altíssima complexidade, ganha-se algo de necessário – musculatura e agilidade. Mas também perde-se algo de vital ao gênero: o cool, a fleuma, a engenhosidade, a inconsequência de espiões como o americano Napoleon Solo (Henry Cavill), que, relutantemente associado ao russo Illya Kuryakin (Armie Hammer), age para proteger Gaby Teller (Alicia Vikander), uma gamine de temperamento imprevisível. A alemã Gaby é filha de um sujeito que se bandeou para o lado capitalista da Guerra Fria com uma mala cheia de segredos atômicos e então sumiu do mapa. Gaby é uma pessoa de interesse para agências de inteligência diversas, e faz o que pode para se manter fora do radar delas trabalhando como mecânica de carros em Berlim Oriental. É típico do diretor Guy Ritchie pedir à plateia que acredite que um macacão e uma ou duas manchas de graxa bastariam para a delicada, feminina e decididamente marcante Alicia Vikander passar despercebida – mas é nesse tipo de absurdo e de atrevimento que está muito da considerável graça de O Agente da U.N.C.L.E. A fervilhante Guerra Fria de Ritchie é cheia de casualidades e acidentes, e todo mundo é uma surpresa – um superagente da KGB pode saber que um vestido Dior vai melhor com um cinto Paco Rabanne, um ladrão pode arrumar emprego na CIA, um ator que fez da hesitação uma forma de arte pode se revelar um manipulador cínico – Hugh Grant, no papel pequeno, mas que teria crescido, se a bilheteria tivesse se animado com esta delícia a ponto de aprovarem uma continuação. Às vezes, não entendo mesmo o mundo.

(The Man from U.N.C.L.E. 2015)

A Última Tentação de Cristo

Quem era vivo e ciente quando Martin Scorsese fez este filme sabe o bafafá que foi o lançamento no Brasil, com cinemas fechados por decreto e gente se manifestando contra e a favor da exibição. Um salseiro, enfim. Mas, se me permitem, tudo aquilo que alguns consideram heresia no livro de Niko Kazantzakis, no fantástico roteiro de Paul Schrader e na magnífica direção de Scorsese é, no fundo, de imensas compreensão e compaixão, ou devoção mesmo, para com o sacrifício do protagonista – particularmente a ideia, que arrepiou muita gente, de que Judas (um maravilhoso Harvey Keitel) é na verdade de uma fidelidade inabalável, e trai Jesus porque é preciso empurrá-lo para o destino que no íntimo ele desejaria recusar. Como Jesus Cristo, Willem Dafoe entrega uma interpretação tão completa, e tão tocante, que só de pensar nela já me comovo. Para mim, é um desses filmes inigualáveis, em que todos os elementos se casam e se multiplicam – a beleza e a solidão de Barbara Hershey como Maria Madalena, a aridez e as cores das locações no Marrocos, a austeridade das vidas que transcorrem nessa recriação palpável da Palestina de vinte séculos atrás e a música atmosférica de Peter Gabriel, feita em colaboração com artistas do Oriente Médio e do Norte da África como Nusrat Fateh Ali Khan, Youssou N’Dour e Baaba Maal. 

(The Last Temptation of Christ, 1988)

Trama Fantasma

Por mais diversos que sejam os temas de seus filmes (Boogie Nights, O Mestre, Sangue Negro), Paul Thomas Anderson volta sempre a uma mesma inquietação: a força impulsionadora da obsessão, e a necessidade dos homens movidos por ela de teatralizar sua trajetória a fim de explicá-la a si mesmos, ou de conferir a ela um significado maior. Esse processo tenso e caótico é a matéria-prima também de Trama Fantasma, em que Anderson se transporta para a Londres dos anos 50, onde Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis, magnífico) está cruzando o equador de uma carreira ilustre como estilista dos muito ricos e aristocráticos. Woodcock controla sua turbulência com uma aderência ritualística à ordem, à rotina e ao silêncio, mantidos com mão de ferro por sua irmã, Cyril (a brilhante Lesley Manville). Ele cria febrilmente suas coleções e, assim que as lança, cai num período de prostração. Em geral, este coincide também com o fastio com sua musa do momento – alguma garota induzida a acreditar em amor e compromisso, mas de quem Woodcock quer apenas inspiração momentânea, submissão e, depois, como que evaporação em pleno ar. Alma (Vicky Krieps) será mais uma delas. Criada de uma pensão, ela tem modos diretos mas atraentes e uma beleza limpa de pintura flamenga. Woodcock está tão enlevado que acha graciosa a maneira como ela ergue o bule para despejar o chá das alturas. Tendo instalado Alma em sua casa-ateliê, esse é o primeiro defeito que ele tenta corrigir. E, como em todas as demais tentativas de aperfeiçoá-la, encontra uma resistência intransponível: Alma não tem a menor intenção de recolher-se ao segundo plano, e guerreia por cada palmo de território. Ela é igualmente feroz, porém, com qualquer pessoa que tente diminuir ou aviltar as criações de Woodcock, ou penetrar sua intimidade. É completa e indispensável, e é também invasiva e  ruptora. Alma, enfim, tem sua própria obsessão – desconstruir e reorganizar o amante-patrão: ele é a sua criação. À sua maneira peculiar, é um filme de guerra.

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