“Green Book”: a versão faz-de-conta da conciliação racial

Atuação maravilhosa de Viggo Mortensen é o que salva do constrangimento o candidato ao Oscar de melhor filme

Em 1962, quando a norma nos Estados Unidos era o racismo, o pianista negro Don Shirley contratou Tony Vallelonga, um leão-de-chácara branco, para acompanhá-lo numa turnê de oito semanas pelo Sul americano – onde a norma era não apenas racismo, mas segregação: negros não podiam comer, beber, hospedar-se, tomar o ônibus e nem mesmo beber água junto de brancos, e onde qualquer violência de brancos contra negros (e não raro ela chegava a níveis horripilantes) era tolerada. Tony, um ítalo-americano do bairro nova-iorquino do Bronx, vinha com tripla vantagem: podia entrar em lugares vetados a Shirley, o que o tornava útil como secretário; sabia levar qualquer um na conversa, o que poderia resultar em muitas bombas desarmadas antes de explodirem; e, se a conversa não funcionasse, tinha punhos que eram como duas marretas. Mas era um sujeito grosseirão, ao passo que Shirley era um sujeito refinado e, verdade seja dita, bastante implicante (também não gostava de ser confundido com negros menos instruídos do que ele – então a maioria –, e mantinha distância deles). Ainda assim, em dois meses na estrada, eles aprenderam a se conhecer e a respeitar-se, até tornarem-se grandes amigos. Ou pelo menos é o que afirma Green Book – O Guia, que entrou em cartaz com cinco indicações ao Oscar nas categorias mais fortes e é co-roteirizado pelo filho de Tony Vallelonga.

Pessoalmente, só não digo que Green Bookpode ser uma perda de tempo porque Viggo Mortensen vale o ingresso até a preço de sala VIP: desde 1985, quando ele estreou com um pequeno papel em A Testemunha(aquele em que Harrison Ford vai parar no meio dos amish), o talento dele e a inteligência com que ele aborda seus personagens só se expandem. Aragorn vai ser sempre dele; e quem o viu na dobradinha Marcas da Violência/Senhores o Crime, sob a estupenda direção de David Cronenberg, sabe a envergadura de que ele é capaz. A direção de Peter Farrelly (de Quem Vai Ficar com Mary?Débi & Lóideetc.) não tem nada de estupenda, mas Viggo é, por conta própria, uma glória no papel de Tony Vallelonga. Em Don Shirley, Mahershala Ali tem um personagem menos atraente – mas também faz muito com ele, especialmente a partir do momento em que começa a relaxar um pouco na companhia de Tony e mostrar outras facetas.

E só não digo também que não vejo razão para um filme tão adocicado e tão sem dentes quanto este, num ano em que Infiltrado na Klane também Pantera Negraconcorrem na categoria principal do Oscar, porque dois atores dotados de muito discernimento toparam fazê-lo, e certamente avaliam que ainda há lugar hoje, ou mesmo necessidade, de um filme como Green Book– embora me pareça muito dúbia a necessidade de um filme que elimina cuidadosamente de seu personagem negro qualquer aspecto que poderia ser interpretado como ameaçador, desafiador ou intimidador e, tendo-o assim tornado perfeitamente neutro, quase bege, faz o personagem branco abrir o coração para ele. Mas eu estou aqui, e Viggo e Mahershala estão lá, assim como Octavia Spencer, que produz o filme (no Globo de Ouro, Peter Farrelly agradeceu o impulso que ela deu ao projeto como sendo decisivo). Octavia é uma pessoa lúcida e esclarecida e, como atriz (aliás, uma grande atriz), dedica-se com muita frequência a filmes com esse didatismo gentil, esse espírito apaziguador e esse apelo aos sentimentos que se veem em Green Book– por exemplo, Histórias CruzadasEstrelas Além do TempoA Forma da Água. Enfim, não compreendo muito bem como Green Bookpode ser educativo, mas essas três pessoas merecem todo o benefício da dúvida. Já como cinema, porém, me parece que o filme é basicamente uma coisa só – é Viggo Mortensen.


Trailer


GREEN BOOK – O GUIA
(Green Book)
Estados Unidos, 2018
Direção: Peter Farrelly
Com Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini
Distribuição: Diamond

Uma consideração sobre ““Green Book”: a versão faz-de-conta da conciliação racial”

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