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Nosso Fiel Traidor

A espionagem de John le Carré é clássica e é contemporânea – e por isso nunca sai de moda

Na virada da década de 80 para a de 90, quando o bloco comunista ruiu e a Guerra Fria tecnicamente acabou, acreditou-se durante uns cinco minutos que o inglês John le Carré, mestre absoluto do romance de espionagem, ia ficar sem assunto, já que a história se encarregara de enterrar seu tema favorito.

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O próprio Le Carré, porém, se surpreendeu com a facilidade com que novas pautas foram surgindo dos rearranjos globais de poder: a transferência (ou transmutação) do poder dos comitês do Partido para recém-formadas organizações mafiosas, sua infiltração em governos de países democráticos, a ascensão dos novos bilionários russos, ucranianos etc. e a rapidez com que eles foram colonizando as capitais europeias, a escalada do tráfico de armas propiciada pelos arsenais da ex-URSS, a simbiose entre essa gente toda e as antigas polícias secretas – essas são só algumas das curiosidades geopolíticas que Le Carré, de quase 85 anos de idade (a serem completados agora em 19 de outubro) e 55 de carreira, passou a explorar com sua percepção arguta, sua imaginação pragmática, sua clareza na avaliação dos dilemas morais e sua prosa irretocável.

O Le Carré da nova ordem global, enfim, é em tudo tão bom quanto o Le Carré anterior, o da Guerra Fria (que ele viveu em primeira mão, como oficial do MI-6, a Inteligência britânica) e de obras-primas como Casa da Rússia, O Espião que Veio do Frio e O Espião que Sabia Demais. Le Carré é ao mesmo tempo tão clássico e tão contemporâneo que não há como ele sair de moda. Só neste ano, ele ganhou duas novas adaptações: na série The Night Manager, com Hugh Laurie e Tom Hiddleston, que ainda não foi exibida aqui, e em Nosso Fiel Traidor, que acaba de estrear nos cinemas.

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O filme é adaptado de um romance que Le Carré publicou em 2010 e é dirigido pela inglesa Susanna White, uma veterana de grandes adaptações para a TV, em minisséries como Parade’s End, Jane Eyre, Bleak House e a fenomenal minissérie americana Generation Kill, que quase ninguém viu e não sabe o que perdeu. Na trama, Ewan McGregor é Perry, um professor universitário que anda meio entediado e sem convicção sobre nada. E anda, também, em situação extremamente delicada com sua mulher, Gail (Naomie Harris), uma advogada graúda que ganha dez vezes mais do que ele e está tentando, sem muito sucesso, engolir a traição do marido com uma aluna. Perry e Gail estão de férias românticas em Marrakesh, no Marrocos – mas os rancores estão vindo à tona, e são eles que empurram Perry, certa noite, a confratenizar com Dima, um russo extrovertido, festeiro, muito rico, rapidamente irresistível e de caráter certamente duvidoso.

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Stellan Skargard, o ator que nunca erra, faz Dima, e é um estrondo no papel, além de ter uma química maravilhosa com McGregor: toda essa energia, em comparação com um casamento que ficou mortiço – Perry até faz algumas tentativas débeis de resistir à atração do novo amigo, mas não consegue. E, de festa em festa, acabado sendo jogado de cabeça, sem colete salva-vidas, em águas muito turbulentas. Dima é um contador que está para ser assassinado, juntamente com mulher e filhos, pelo seu novo chefe na máfia russa. Como Perry é um sujeito honrado, Dima pede ajuda a ele. E, assim, o envolve com algumas das pessoas notoriamente mais perigosas do mundo, além de outras que não alardeiam em público o seu perigo. Por exemplo, membros do Parlamento britânico e também Hector (Damian Lewis), um personagem muito típico na obra de Le Carré – o burocrata dedicado, que não impressiona ninguém, mas é implacável.

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Além de ter sido secretário da embaixada e depois cônsul político na Alemanha nos anos 60 (ambos os cargos são codinome para “espião”), Le Carré se formou em Línguas na Universidade de Oxford e foi professor em Eton, a escola de ultra-ultra-ultra elite inglesa que prepara os rapazes que vão para Oxford e Cambridge (de onde, tradicionalmente, eles eram recrutados para a espionagem). Ele é um obecado pela veracidade do detalhe e pela tessitura de seus romances, e escreve como um enxadrista disputa uma partida. Ou seja, entrelaça incontáveis fios – sugestões, pistas, comentários, observações –, e planeja cada lance com muita antecedência e discernimento. Às vezes, uma adaptação consegue preservar toda essa riqueza e sutileza, como no fenomenal O Espião que Sabia Demais, de 2011, com Gary Oldman – mas aí a parte da plateia que não tem familiaridade com as minúcias da hierarquia social britânica tende a se perder um pouco. Nosso Fiel Traidor é uma adaptação, digamos, mais amigável: dirigindo com muito critério, Susanna White conserva o espírito e a essência, mas usa pinceis um pouco mais largos para pintar o quadro. Pode não ser um Le Carré 100%. Mas qualquer Le Carré é 120% mais do que aquilo que costumam servir nos filmes de espionagem.

Dica: tente achar Le Carré fazendo uma ponta numa cena em um museu em Berna.


Trailer


NOSSO FIEL TRAIDOR
(Our Kind of Traitor)
Inglaterra/França, 2016
Direção: Susanna White
Com Ewan McGregor, Stellan Skarsgard, Naomie Harris, Damian Lewis, Jeremy Northam, Khalid Abdalla, Mark Gatiss, Grigoriy Dobrygin, Saskia Reeves, Jana Perez, Alicia von Rittberg
Distribuição: Diamond Filmes

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