O Lar das Crianças Peculiares

Poderia ser o Bastardos Inglórios de Tim Burton. Mas Burton, definitivamente, não tem a valentia (nem a ousadia) de Tarantino


ESTÁ TUDO NO TRAILER E NOS CARTAZES DO FILME, MAS ALGUMAS PESSOAS PODEM ACHAR QUE NESTE TEXTO HÁ SPOILERS


Em garoto, Abe teve de fugir da Polônia, onde monstros tenebrosos o ameaçavam, e procurar abrigo em um pequeno orfanato escondido numa ilhazinha ao largo da costa do País de Gales. Dirigido pela severa mas também muito amorosa Senhorita Peregrine (a maravilhosa Eva Green), sempre impecável nos seus espartilhos e acompanhada de um inseparável cachimbo, o orfanato era já o lar de um punhado de crianças bastante diferentes. Emma (Ella Purnell) era tão leve que precisava calçar sapatos de chumbo, ou subiria aos céus. A pequena Bronwyn e seu irmão Victor (Pixie Davis e Louis Davison) tinham força descomunal. Fiona (Georgia Pemberton) fazia qualquer vegetal crescer a um simples toque, enquanto Olive (Lauren McCrostie) ateava fogo aos objetos só de pôr as mãos neles. Horace (Hayden Keeler-Stone) podia projetar seus sonhos na parede, como filmes. Millard (Cameron King) era invisível, e se não estivesse vestido ninguém saberia onde ele andava. Hugh (Milo Parker) tinha dentro de si um exame de abelhas, que às vezes escapavam zumbindo por sua boca. Enoch (Finlay MacMillan) tinha a estranha habilidade de dar vida a qualquer objeto ou mesmo a seres mortos, ao inserir no peito deles corações de animais.

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Ou isso, ao menos, era o que Abe, já velho (o sempre estupendo Terence Stamp), contava ao neto Jake (Asa Butterfield), que acreditava piamente nessas histórias. E como não acreditaria, se Abe tinha até mesmo algumas fotos antigas e descoloridas desse grupo de personagens? Os pais de Jake, os professores, os colegas de escola, porém – todos se riam de sua credulidade, até que Jake parou de acreditar em tanta fantasia. Não deixou de amar o avô; mas deixou de crer nele. A força da crença compartilhada com Abe, no entanto, retorna em toda a sua intensidade quando Jake vê o avô morrer de forma hedionda, nas mãos de um monstro idêntico aos que ele descrevia. E é para atenuar o seu luto, e para ver se ele para de misturar realidade e invenção, que o pai o leva à ilhazinha onde ficava o orfanato – o qual, desde o dia 3 de setembro de 1943, quando foi atingido por bombas despejadas pelos alemães durante a II Guerra Mundial, é uma ruína, dentro da qual ninguém sobreviveu.

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Isso é o que pensam todos: no romance O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, do americano Ransom Riggs, que o diretor Tim Burton adapta aqui, o orfanato e os órfãos sobreviveram, sim: estão presos naquele 3 de setembro de 1943, que todos os dias se reinicia magicamente, tal e qual sempre foi, graças à habilidade da Senhorita Peregrine de manipular o tempo. Assim que os bombardeiros alemães se aproximam – pronto, volta-se ao ponto de partida. Enquanto a Senhorita Peregrine for capaz de impedir que os monstros adentrem esse dia, as crianças permanecerão a salvo.

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Está tudo bem claro, enfim: monstros tenebrosos que invadem a Polônia e disseminam sua destruição pela Europa; pessoas diferentes, estranhas e indesejáveis, que têm de se esconder da perseguição deles para não serem mortas – O Orfanato da Srta. Peregrine é uma alegoria muito nítida do Holocausto. E a ideia de que há grupos de crianças espalhados por aí, em dobras do tempo, que puderam ser postos a salvo do genocídio, é uma reimaginação contundente do horror. É uma declaração de que só na fantasia o desfecho dele poderia ter sido diferente, mas de que é entretanto preciso imaginar que poderia ser assim. É um tributo ao poder da memória de preservar vivos certos passados, como um dia que se repete eternamente. É uma exortação à necessidade de que as experiências sejam transmitidas de geração em geração, para que uma informe a seguinte sobre o legado da história. E é uma celebração da ficção: nela, tudo pode ser reescrito, refeito, redesenhado, para que possamos perceber que somos capazes de mais, ou melhor, do que aquilo que já foi feito por nós e pelos outros antes de nós.

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Ou seja, O Lar das Crianças Peculiares poderia ser, para a obra de Tim Burton, aquilo que Bastardos Inglórios e Django Livre foram para a obra de Quentin Tarantino. Imaginando, em Bastardos Inglórios, que um grupo de soldados e resistentes conseguiu mandar todo o comando nazista (incluindo Adolf Hitler: que maravilha!) pelos ares com uma bomba no cinema de uma moça judia em Paris, Tarantino ao mesmo tempo vingou os esforços de toda uma geração, e decretou que, no seu cinema ao menos, a história há de ser outra. Em Django Livre, repetiu a façanha, tratando de outra chaga histórica: os próprios escravos conseguiram derrotar a escravidão – e assassiná-la, espancá-la, moê-la e esquartejá-la, derramando quantidades copiosas de sangue, como Tarantino gosta.

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Tim Burton, porém, não enxergou suas próprias possibilidades. O lar das crianças peculiares deveria ser, ao final, o lugar do qual cada espectador poderia dizer: aqui o Holocausto não aconteceu; nesta pequena ilha, nós derrotamos a sanha genocida da Alemanha de Hitler. (Só como observação, uma ilha um tanto maior, a Inglaterra, foi o primeiro e um dos únicos países a acolher crianças judias e dar lares a elas antes que os nazistas pudessem matá-las, e foi também a nação crucial para a derrota do Reich. Quando as pessoas se decidem a isso, até as fantasias mais impossíveis podem se tornar reais.)

Mas Burton ameniza tanto a tragédia real que está na base de O Orfanato da Srta. Peregrine, e de tal forma se refugia naquele seu mundo particular, que há tantos anos já ele vem garimpando, que toda a potência da fantasia específica do escritor Ranson Riggs se dilui, até se perder de vez. O Lar das Crianças Peculiares tem encanto, tem leveza, tem beleza – bem mais de tudo isso do que havia nos filmes de Burton da última década. Mas não tem a vida e a contundência que tinha, por exemplo, Edward Mãos de Tesoura: de tanto garimpar seus veios pessoais de memória, o diretor já quase os esgotou. E nem reconhece mais o ouro quando o dão para ele assim, de mão beijada.


Trailer


O LAR DAS CRIANÇAS PECULIARES
(Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children)
Inglaterra/Estados Unidos/Bélgica, 2016
Direção: Tim Burton
Com Eva Green, Asa Butterfield, Elle Purnell, Terence Stamp, Samuel L. Jackson, Finlay MacMillan, Allison Janney, Chris O’Dowd, Rupert Everett, Judi Dench, Pixie Davis, Georgia Pemberton, Lauren McCrostie, Hayden Keeler-Stone, Cameron King, Milo Parker
Distribuição: Fox

3 comentários em “O Lar das Crianças Peculiares”

  1. Cara amiga, você poderia, pelo menos uma vez por semana, dissecar um clássico do cinema ( com resenhas tão extensas e detalhadas quanto o Eugênio em filmes, Filmes pra doidos e 50 anos de filmes ou a Wikipédia em inglês e o IMDB)? Seus textos ( que leio desde os bons tempos da saudosa SET) são brilhantes. E, por favor, não esqueça de me enviar TODAS as suas futuras publicações ( e quem sabe até as anteriores) para o meu e-mail. Muito obrigado.

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