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Domingos Montagner

“As mudanças chegam, e não é preciso provocar”

Estou viajando e, por causa do fuso horário, já era de madrugada quando fiquei sabendo da morte trágica de Domingos Montagner, durante um mergulho que deveria ter sido um momento de prazer e de comemoração do seu trabalho soberbo em Velho Chico. Domingos tinha 54 anos e teve uma carreira longa no teatro e no circo (que ele adorava), mas breve na televisão e no cinema: só aos 49 anos fez seu primeiro papel na TV. E disparou, porque era um desses talentos autênticos, imediatamente convicentes e persuasivos, que não precisam de ornamentação nem de promoção. Sinto não só pela perda de um grande ator, mas sobretudo pela perda de uma pessoa tão serena, tão gentil, tão doce e acolhedora. Entrevistei Domingos uma vez apenas, durante o lançamento de De Onde Eu Te Vejo, e não posso em hipótese nenhuma dizer que o conhecia. Mas, como já tenho também um bom tempinho de vida e essas coisas a gente vai aprendendo, posso dizer com segurança que uma doçura e uma calma como as dele são coisas que não se pode interpretar; ou elas são genuínas, ou não são.

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Com Camila Pitanga em “Velho Chico”

Fui, portanto, procurar a entrevista que fiz com ele, Denise Fraga e o diretor Luiz Villaça naquela ocasião. Reproduzo aqui dois trechos dela, em que Domingos falou mais; embora seja tristíssimo ouvir a voz dele hoje e saber que ele se foi, acho que percebe-se no que ele diz, e como o diz, que pessoa de sentimentos finíssimos ele era.

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Com Denise Fraga em “De Onde Eu Te Vejo”

De Onde Eu Te Vejo fala de um casal que está junto já há bastante tempo, mas que acaba de passar a viver em dois apartamentos separados, de cujas janelas eles se veem: Ana Lúcia (Denise) acha que a vida deles está muito igual, e que não é possível que duas pessoas não mudem nunca; algo deve estar errado. Fábio (Domingos) vê que não há como contornar a comichão de Ana Lúcia, e a aceita – mas gostaria que tudo pudesse permanecer como era, e que não fosse necessário a eles passar por isso. “O que eu acho lindo no filme”, disse Denise, “é essa consciência de que tudo se move”. E como se move.


Entrevista

Domingos, a Denise e o Luiz são casados e costumam trabalhar juntos. Como você entrou foi participar desse projeto junto com eles?

Tudo começou, no meu caso com um convite do (diretor)  Luiz (Villaça), que me deu uma alegria muito grande, porque nós temos uma admiração mútua. O Luiz conhece minha história no teatro, no circo, e ele confiar em mim para fazer esse personagem e trabalhar com a Denise foi uma honra. Você lê o roteiro e vê que é uma oportunidade de exercer seu ofício com tanta dignidade, com tanta importância, então isso já começa bem, né? Durante as leituras e os ensaios de cena, fomos construindo com cuidado qual seria a dimensão desse casal, e para onde queríamos conduzi-lo. Acho que a Denise e eu temos também essa relação com a comédia, e um tônus de interpretação muito semelhante para trabalhar nesse limiar entre a comédia e o drama. Temos uma afinidade de apreciação sobre como a comédia e o drama andam juntos. É uma coisa muito bonita; eu como palhaço gosto muito do lirismo, da melancolia, aliados ao humor.

O filme fala muito da importância de conservar certas coisas – relacionamentos, a memória de uma cidade – não só por hábito, mas principalmente por redescobrir as razões pelas quais elas merecem ser conservadas. Esse é um sentimento doce, terno, e que não é muito celebrado no cinema hoje.

O Fábio tem uma visão instintiva disso. Ele vê a vida como uma mudança natural; as mudanças acontecem e ele administra isso com muita naturalidade. Ele não tem avidez pela mudança; não é preciso ficar aflito por ela, porque ela chega. Ele tem uma atitude conciliadora para com a própria vida mesmo, e uma facilidade maior para identificar quais as constantes dentro das mudanças. Sou um pouco assim também. Sou uma pessoa tranquila, gosto de ficar quietinho. Assim como o Fábio, acho que as mudanças chegam, e não é preciso ficar provocando muito, não.

8 comentários em “Domingos Montagner”

  1. Ernesto,

    Leia mais. Leia Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos. Principalmente, leia Raquel de Queiroz. Há tanta poética, amor, candura e esperança nessa cearense arretada. Eu considero que ela foi nossa melhor escrita no século XX. Não se limite. Você pode ser maior.

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  2. Isabela, fiquei muito tocado pelas suas palavras em relação ao Domingos, mas não posso deixar de ressaltar a eficiência da concisão do seu texto. Parabéns. E obrigado por escrever com visível prazer e preocupação em fazer direito seu trabalho. Amo nossa língua e em igual medida quem cuida dela. bj

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  3. Pra você ver que o Velho Chico é um rio traiçoeiro.

    Minha família inteira vem do sertão nordestino.
    Até os 30 anos, passei um quarto de minha vida por lá.
    Primeiro sendo levado, depois cuidando de negócios familiares.

    É o lugar que eu mais odeio no mundo.
    Tanto pelo ambiente infernal da natureza seca, como pela cultura odienta das pessoas ressequidas — em todos os sentidos.

    Uma miséria total: social, econômica, cultural, política. O mal predomina naquele lugar. É como o centro e núcleo fundador de tudo o que há de ruim e de pior no Brasil: o atraso, a ignorância, a estupidez, a superstição e sobretudo a MALDADE e DESUMANIDADE de todos os poderosos. Mais exatamente: de cada cidadão ou bandido que ocupa uma posição de poder.

    Como tudo no Brasil é uma farsa, até a literatura regionalista sertaneja consagrada como “cânone literário” é farsante — GLAMOURIZANDO aquele inferno.

    Se quer saber a VERDADE sobre a realidade do povo sertanejo, recomendo a leitura do romance mais curto (menos de 80 páginas) e mais apocalíptico (feito para destruir toda a idealização feita em todos os romances do gênero) já feito. O Livro Mais Devastador Já Escrito :

    POLÍGONO DAS SECAS

    de Diogo Mainardi

    o Anti-Ariano Suassuna

    Eis a proposta do livro:

    MATAR a Literatura Regionalista Sertaneja. DESTRUIR toda a mitologia do sertão. DESCONSTRUIR todos os clichês arraigados em todos os romances regionalistas e na literatura de cordel, que mitificam figuras repugnantes e elementos que representam tudo o que o Brasil em particular e o Terceiro Mundo em geral têm de PIOR:

    a cultura de barbárie, o obscurantismo medieval, o fanatismo religioso, as crendices estúpidas, a exploração do desespero de vidas sem futuro pelo charlatanismo mais vigarista; o atraso em todos os níveis da existência humana, a ignorância imperante, a miséria mais extrema, as epidemias de inúmeras doenças contagiosas, a fome atrofiando os cérebros e gerando crianças retardadas; o sofrimento cotidiano dos mais indefesos, a rotina de humilhações, estupros, assassinatos e necrofilia; a semi-escravidão aceita como vontade divina; a paisagem destruída com o meio ambiente devastado; a indústria da seca, os políticos comprando votos com verbas roubadas do povo, a corrupção absoluta, a criminalidade institucionalizada, a ausência de lei, de progresso e de justiça, os piores criminosos impunes se perpetuando no poder; a insanidade endêmica, a psicose coletiva, a violência generalizada, a desumanidade geral, o horror perpétuo, o autoritarismo dos coronéis latifundiários e o terror dos cangaceiros como a mais aceita expressão de poder.

    Enfim: o objetivo do autor é mostrar como o Sertão nordestino é o INFERNO mais abominável possível, fundamentado por uma cultura odiosa, imoral e estupidificante. ARRASAR todo o culto aos valores obscurantistas do povo sertanejo e da Literatura Regionalista, mostrando que não valem nada.

    E ele consegue. Diogo Mainardi é o autor perfeito, tanto em estilo e linguagem como em erudição e humor. Mainardi usa todos os mesmos elementos e arquétipos que compõem o cânone do romance sertanejo e os volta contra si mesmos, destruindo a literatura regionalista por dentro. Sua narrativa é um Alien, que mata o hospedeiro.

    Li o romance inteiro em uma hora. Leitura deliciosa, divertidíssima, empolgante, reveladora, desmistificante. Até aplaudi. Nunca um livro me arrebatou tanto. Fiquei com a alma lavada. E é uma estória de HORROR. Com elementos do Surrealismo e do Sobrenatural e mortes em massa. Tudo narrado em tom sóbrio e seríssimo, em capítulos curtos e velozes, sem enrolação e encerrando com uma explicação didática e arrepiante.

    Eis a realidade nordestina esfregada na cara do leitor, tratando esse tema como ele merece, sem nenhuma concessão ou piedade, reduzindo todos os mitos a pó. Ninguém escapa impune. Nem o santo Padre Cícero.

    Afinal, o autor presta um serviço de cidadania ao trazer o leitor á razão. Mesmo que seja a tapas e pontapés.

    É o tratamento de choque humanístico:

    se quisermos ser uma nação de cidadãos civilizados,

    o primeiro passo é rejeitar a barbárie desumana que é o Sertão nordestino.

    E isso começa se rejeitando a mitificação dessa realidade dantesca,

    há um século e meio sendo glamourizada e enaltecida pelos romances da Literatura Regionalista.

    Corajoso. Radical. Iconoclasta. Extremo. Punk. Assombroso.

    POLÍGONO DAS SECAS

    de Diogo Mainardi

    o Johnny Rotten das Letras

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      1. O que me impressiona ao ler o comentário do Sr. Ernesto é a falta de sensibilidade, a pequinez, o preconceito arrogante e desmedido! Isabela faz uma ode a esse magnífico ator que, infelizmente, em uma tragédia que poderia ter acontecido em qualque lugar, nos deixou tão precocemente e, ao invés de somar, vem aqui destilar ódios e ressentimentos! Reflita meu caro e procure uma terapia para entender tanto sentimento negativo! O atraso não estã no nordeste e nem nos nordestinos, mas em você!

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      2. Estou falando não de uma civilização isolada, mas de um REALIDADE SOCIAL POLÍTICA que é parte da realidade brasileira, MAS que é a única do Brasil que ainda sofre a opressão e ilegalidade institucionalizada aberrante chamada CORONELISMO. É disso que se trata o livro romance que CARICATURA por exagero o que sempre foi glamourizado na literatura regionalista e na ficção da Rede Globo. SÓ isso. Apenas se deve dar um choque de realidade na produção cultural para eliminar o atraso e fazer o Nordeste avançar com todo o seu potencial desperdiçado. O atraso histórico é um fato. Devemos ser realistas e adultos para encarar as causas do descompasso nordestino em relação a outras regiões do Brasil. Se digo isso, não é por implicância pessoal, mas por CONHECIMENTO pessoal.

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      3. Logo em seu livro de estréia, Diogo Mainardi foi PREMIADO com o Troféu Jabuti de Melhor Livro do Ano. A Academia de Letras o prestigiou. Pelo jeito, eu estou bem acompanhado por outras pessoas que conhecem LITERATURA e que também acham o Mainardi digno de nota.

        Meu conselho a quem ainda não conhece ou não domina os dois assuntos que abordei aqui (Realidade Sertaneja X Literatura de Ficção Sertaneja): leia o livro.

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